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Por vezes é nos períodos de maior caos que melhor me organizo para sair da rotina e ir ver coisas, como fazia quando os dias ainda tinham vinte e quatro horas. Foi o caso esta semana, na Galeria Zé dos Bois e no Teatro de S. Luiz.
No primeiro, assisti a um documentário magnífico de Leonor Areal, filme-ensaio, como lhe chama, partindo de um pequeno filme de 1913 com cinco minutos, que a realizadora trabalhou ao pormenor, fotograma a fotograma, assim descortinando figuras da época, partindo de muitas interrogações e encontrando pelo meio algumas relativas certezas. O trabalho de documentário no seu melhor, em renda fina onde teve de mergulhar fundo nos rostos do tempo e estudar formas, expressões, usar conhecimentos já firmados da análise fisionómica, como o formato das orelhas, método científico usado e comprovado para reconhecimento de pessoas por polícias e organizações do género, assim como sistemas judiciais. Mas acima de tudo, uma profunda investigação fotográfica, a extensa contemplação de muitos rostos em variados documentos de época.
Escolheu, preferencialmente, a geração e o escol de eleição de Pessoa. Na minha opinião, com muito sucesso. Serei mais específica.
A situação filmada é a saída de um concerto, a 23 de Fevereiro de 1913, no Teatro de São Luiz, na altura designado Teatro da República. Não é a saída de uma fábrica, como já é mítico no cinema e na sua história, mas de um concerto no teatro. A câmara fixa, no passeio em frente, capta os que saem, mas também os que já ali estavam e os que passam. Crianças, bombeiros, grupos de amigos, casais, adolescentes, homens, muitos homens. Chapéus, bigodes.
Os filmados têm, perante a câmara, uma atitude infantil, uma inocência que corresponde ao estádio em que se encontrava a humanidade na altura, face ao registo da imagem em movimento.
O documentário tem por título “Onde está o Pessoa?”, pois é ele o principal investigado, mas a busca traz consigo uma parte do escol da época. E na maior parte dos casos, confirma-se. Artistas, gente da literatura, da edição, do teatro, da música. Entretanto, já depois da conclusão do documentário, que é, afinal, uma obra aberta ou “in progress”, a realizadora já chegou a mais conclusões, descobertas e confirmações, sendo a mais importante que se trata mesmo de Pessoa. Um Pessoa ainda jovem, com vinte e quatro anos. Nós também saímos praticamente sem dúvidas. O trabalho é excelente. Desdobra-se, a partir daqueles 5 minutos de filme, por cerca de uma hora, e vai observar o pormenor para lá dos rostos. Movimentos, gestos, interacções dos presentes com a câmara e entre si, algumas muito subtis, outras bem exuberantes.
É muito comovente ver o jovem Pessoa em movimento, quando nos habituámos a ele plasmado em imagens fixas.
A câmara filma a saída de um concerto dirigido pelo maestro Pedro Blanch, o qual também aparece, assim como um dos músicos exibindo o estojo do seu instrumento. A imperfeição técnica e as colagens, a passagem dos carros ocultando momentaneamente o espectáculo da saída, fazem pensar a realizadora, e no meu entender, bem, que estejamos perante pontas de filme, partes rejeitadas de um filme maior. Que poderá, ou não, um dia, vir a aparecer. Como agulha num palheiro.
Mas voltemos ao filme, propriedade da Cinemateca Digital, onde as personagens que observamos parecem observar-nos, pois a partir do momento em que se apercebem da câmara, não “nos” abandonam mais com os olhares, os gestos, alguns bem ousados, mesmo obscenos, dos dedos, das expressões, os risos, os sorrisos, as idas e vindas, pois há quem saia do campo de filmagem para voltar a aparecer e não mais arrede pé, as momices, as brincadeiras das crianças, algumas delas sem-abrigo, as palavras que quase adivinhamos. Olhavam o futuro e não sabiam, assim trazendo o passado para o nosso presente.
Para além de textos de Pessoa e de outros textos da época, a banda sonora, inteligentemente, é o programa do concerto (cujo cartaz na parede do teatro o filme mostra, bem como o do concerto seguinte, o de 9 de Março), com algumas pausas para ouvirmos ruídos de multidão, que não sendo, bem poderiam ser os captados ali, naquele momento. Para além de Pessoa e da sua tia Anica, conseguimos ver Amadeo de Sousa Cardoso, António Ferro, António Silva, Armando Côrtes-Rodrigues, Augusto Ferreira Gomes, Boavida Portugal, Eduardo Viana, Ernesto Vieira, Florbela Espanca, Jorge Barradas, Pedro Blanch, Stuart Carvalhais, e até o visconde de S. Luís de Braga, dono do teatro. O teatro já se chamara D. Amélia e passara a designar-se Teatro da República, depois da implantação da mesma. Decisão do próprio visconde, o principal investidor e grande dinamizador.
Mas voltemos ao D. Amélia, ou ao S. Luiz, ou ao República, se quiserem, pois este teatro concentra, nos seus nomes, a nobreza, o clero e o povo. Após um incêndio em 1914, o que acrescenta mérito a este documentário que nos mostra o teatro antes de ter sido totalmente destruído, seguiu-se a reconstrução respeitando a traça original. Em 1918, após a morte do Visconde de São Luiz de Braga, e em sua homenagem, passa a chamar-se Teatro São Luiz. Em 1928 nova remodelação e novo nome, S. Luiz Cine. Contudo, os edifícios são como as pessoas que sofrem várias fases ao longo da vida e em 71, adquirido pela Câmara, passou a designar-se Teatro Municipal de S. Luiz.
Alguns dias depois, neste mesmo mês de Setembro de 2023, desloco-me ao S. Luiz para assistir a um outro espectáculo: A Tempestade, de Shakespeare, onde vários amigos e amigas participam, espectáculo que reúne teatro e música, as artes para que nasceu este teatro, onde, nessa fase inicial, eram também passados pequenos filmes. Contudo, ao entrar, senti-me rodeada pela multidão que saía de um concerto, em 1913, as personagens involuntárias e ao mesmo tempo entusiasmadas de um filme que este antigo cinema deveria passar aqui, pois embora aparentemente banal, é um momento importantíssimo da sua história, pelas preciosas personagens da nossa cultura que ali reúne, e que Leonor Areal primorosa e tão originalmente recuperou.