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Hoje vou repescar e continuar um tema sobre o qual escrevi há umas semanas atrás, o acesso a conteúdos culturais. Ora, em Março deste ano, alguns dias antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, o Tribunal de Coimbra decidiu absolver todos os arguidos num caso de pirataria dos conteúdos da NOS. Num total de 38 réus, o principal era um electricista da Figueira da Foz que vendeu e instalou na casa dos outros 37, boxes de TV com acesso pirateado a tudo quanto é canal pago. Alegadamente.
Esta história tem dois pormenores interessantes. O primeiro é que o caso começou a ser julgado em Janeiro de 2022 e a sentença foi pronunciada dois meses depois, em Março. A justiça portuguesa até funciona rápido quando os réus não têm dinheiro para pagar a quem a faça perder tempo. Nada que não soubéssemos já.
O segundo ponto interessante é a justificação do Tribunal para absolver os clientes do electricista. De acordo com a notícia, o Tribunal considerou que a operadora NOS não conseguiu demonstrar que teve prejuízo porque não conseguiu provar que estes arguidos teriam feito um contracto com a NOS caso não tivessem acesso às boxes de TV ilegais. Ou dito por outra forma, a escolha não é apenas entre o serviço legal ou ilegal, mas sim entre estas duas opções e a opção de não ter serviço de TV.
Está claro que não foi esta última a opção escolhida, caso contrário as três dezenas de pessoas não seriam presentes a um tribunal. Mas o pormenor, e o Diabo esconde-se nos pormenores, a NOS não conseguiu demonstrar que foi prejudicada com esta escolha. Porque nada indica que estas pessoas teriam escolhido o serviço da NOS se a box pirata não existisse. Podemos ir até mais longe e afirmar que bem pelo contrário, estas pessoas tiveram a escolha, e decidiram-se por não fazer negócio com a NOS.
O que para mim salta à vista é o absurdo da situação, uma empresa meter potenciais clientes em tribunal por terem escolhido a concorrência. Se, por exemplo, em vez de canais de televisão estivéssemos a falar de pão alguém acharia normal o Continente meter malta em tribunal por comprar na padaria da esquina ? Ou por fazer o seu próprio pão em casa ? Claro que não, mas parece que o mundo da cultura vive de acordo com as suas próprias regras. Ou para ser mais preciso, os distribuidores de bens culturais não seguem as regras a que todos os outros negócios são obrigados.
Por exemplo, monopólios não só são tolerados como incentivados e aceites como normais. A Netflix, e todos os macaquinhos de imitação que se lhe seguiram, produzem séries que só estão disponíveis para quem subscreve o serviço. Certo, o valor de uma subscrição é tipicamente baixo, mas você aceitaria como normal que a couve tronchuda só estivesse à venda em exclusivo no Pingo Doce ? Claro que não. Aliás, houve uma empresa que tentou fazer este tipo de joguinhos, mas correu mal. A Nestlé, que inventou as cápsulas da Nespresso, tentou vendê-las apenas e em exclusivo nas suas lojas. A ideia até não foi mal pensada, porque tornava o acto de compra de café num símbolo de status. E o ser humano, se há coisa que gosta, é pavonear-se em frente aos outros.
Ao início quem queria café da Nexpresso apenas podia comprar as cápsulas nas lojas oficiais. Mas o sucesso foi tanto, que logo apareceram as imitações, perfeitamente legais diga-se. A Nespresso bem tentou impedir, com recurso a tribunais e patentes, mas estava a remar contra a maré. No espaço de meses, todas as cadeias de distribuição apareceram com as suas próprias cápsulas, compatíveis com as máquinas oficiais da Nespresso. E recentemente, para meu espanto, vi até cápsulas da Nexpresso à venda num Delhaize. Sic transit, gloria mundi.
Voltado ao mundo dos livros, músicas e filmes, é difícil de compreender que os distribuidores limitem o acesso destes bens. Afinal, que sentido faz que o Netlifix produza séries em exclusivo para serem vistas apenas nessa plataforma ? Não fariam muito mais dinheiro se estivessem disponíveis a muitos mais potenciais clientes ? Talvez. O preço de um determinado bem é determinado pela oferta e pela procura, e o que os distribuidores e editores estão a tentar fazer é aumentar o preço limitando a oferta. Princípios básicos de economia, que poderiam funcionar se o mundo fosse a preto e branco fosse como vem nos livros. Mas não é.
Assim, e por muito que os editores lutem contra, a pirataria existe como garante do são e bom funcionamento do mercado. Os editores querem limitar a disponibilidade, aumentando a escassez e assim fazer subir os preços. A pirataria mina este esforço, colocando séries, filmes e músicas à mão de semear a quem não os pode, ou não quer, pagar. Por isso é que esta estratégia de escassez artificial por parte dos editores nunca funcionou totalmente.
Nos anos 80, quando o Serafim Saudade era o “artista da rádio, tv, disco e da cassete pirata”, era comum ver nas feiras de Portugal as ditas cassetes piratas. Os filmes do videoclube eram copiados para VHS e os livros na universidade, fotocopiados sem dó nem piedade. Não foi preciso haver a Internet para se ter acesso quase gratuito a livros, filmes e músicas. O que a Internet conseguiu foi desequilibrar a balança definitivamente a favor da arraia-miúda. A partir do momento que era digitalizado, fosse um livro, uma música ou um livro, ficava imediatamente disponível a qualquer um com uma ligação de Internet e paciência para o procurar.
No início do milénio, não faltaram os profetas da desgraça que anunciavam o Apocalipse das Artes, com a chegada da pirataria digital. Vinte anos depois, como acontece sempre, provou-se que as carpideiras estavam enganadas. Continuam-se a produzir filmes e música, os livros continuam a ser escritos. Quem quer sacar da net, saca. Quem quer pagar a subscrição mensal, paga. Ou como escreveu o Cesariny, “afinal o que importa não é haver gente com fome, que assim como assim ainda há muita gente que come”.
Então porque é que os editores e distribuidores insistem no erro ? Porque é que é mais fácil eu comprar um molho de grelos de nabo em Bruxelas que ver um filme português ? Porque a única vantagem competitiva dos distribuidores e editores é a exclusividade dos seus portfólios. Se for possível ver o mesmo filme em plataformas de streamingdiferentes, acontecem duas coisas. Primeiro, o preço baixa porque aumenta a oferta. E segundo, os distribuidores que não se conseguem diferenciar ou fidelizar clientes, fecham portas. Assim continuamos presos nesta forma idiota de distribuir conteúdos. Valha-nos a pirataria, que vai corrigindo alguns dos males do mercado da cultura.