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Nas minhas primeiras andanças em Aljezur, vi mulheres estrangeiras às quais ali sobrava o que no seu país faltava, o sol. Na ânsia de o aproveitarem, tinham partes generosas do corpo à vela, tornando‑se alvo de olhares cobiçosos.
Na tez e nos traços do rosto, percebi igualmente a presença de imigrantes asiáticos. Alguns deles, soube‑o depois, haviam fugido da vida de escravo que levavam no concelho de Odemira.
O Mercado Municipal era um repositório de peixe, hortofrutícolas e produtos tradicionais da região. Na esplanada do bar, a conversa versava sobre um senhor — se bem entendi, autónomo e a gozar de boa saúde — cuja mulher morrera. A preocupação dos circunstantes advinha de o cavalheiro já não ter quem cozinhasse para ele, precisaria de arranjar uma companheira «para lhe fazer o jantar». São séculos de machismo e de enviesamento, não fiquei surpreendido. Acredito que os seus filhos e netos serão diferentes.
Aljezur tem dois núcleos principais, separados por uma várzea.
O antigo, espalhado por encostas, desce até ao leito da ribeira. O castelo, erguido pela mourama no século x, vale pela vista e por se imaginar a sua importância de antanho. Serviu para assegurar a proteção dos íncolas e o controlo do porto fluvial.
O edificado da parte velha de Aljezur sofreu danos importantes por ocasião do terramoto de 1755. Por iniciativa do bispo do Algarve, D. Francisco Gomes de Avelar, começou a ser construída, no derradeiro decénio do século xvɪɪɪ e em ponto afastado do centro histórico, uma nova igreja matriz, cuja consagração ocorreu na primeira década do século xɪx. O pedaço de terra em causa oferecia melhores condições de salubridade aos aljezurenses e o templo deveria ser elemento catalisador da fixação de gente nessa área. Porém, a maioria das pessoas não cumpriu a promessa, feita ao bispo, de para aí se transferir. Na verdade, só na segunda metade do século xx o grosso da população deixou o casario medieval a fim de se instalar nas cercanias da igreja‑chamariz. Desenvolveu‑se então um segundo núcleo da vila.
Na zona antiga de Aljezur, visitei o Museu Municipal, a Igreja da Misericórdia e o Museu de Arte Sacra Monsenhor Manuel Francisco Pardal, a Casa‑Museu Pintor José Cercas e o Museu Antoniano (as notas que neste colhi não são relevantes para o presente texto).
No primeiro, o público pode ver artefactos que radicam na presença dos Árabes no concelho, uma mostra de património etnográfico e uma exposição de património arqueológico. O meu destaque vai todo para duas peças de valor etnográfico, a saber, a miniatura de uma carroça, típica do Algarve, com cobertura de lona decorada, e um carro movido por animal de tração. Duas peças que me surpreenderam, de real beleza plástica. Aplausos para os abegães que as fizeram.
Não é particularmente bonito, o exterior da Igreja da Misericórdia, mas apreciei o pano lateral com três aberturas para os sinos. O interior estava tão limpo e escrupulosamente cuidado que parecia nunca se ter realizado lá uma cerimónia, religiosa ou de outra índole. Prendeu o meu interesse a tela do retábulo‑mor, na qual está representada a Visitação.
Do museu de arte sacra, instalado em dependências anexas à Igreja da Misericórdia, menciono a cruz de madeira com Cristo de marfim, do século xvɪ e procedente da Índia. Na parte superior da base, a escultura de um caranguejo reporta‑se a um milagre da vida de São Francisco Xavier. Reza a lenda hagiográfica que, em 1546, uma tempestade abateu‑se sobre as águas do Oriente em que Francisco, acompanhado por outras pessoas, navegava. Perante a inquietação dos parceiros de viagem, Francisco mergulhou o seu crucifixo no mar e logo as águas se acalmaram. Acontece que, ao fazê‑lo, perdeu o crucifixo. Achava‑se Francisco numa praia quando um caranguejo saiu do mar e lho devolveu.
O mundo onde vivemos tem estado sujeito a temporais, fortes e repetidos. Há quem ainda não perceba que estamos todos no mesmo barco e que não o podemos deixar. Na ausência de milagres, cabe‑nos agir sobre os elementos que desencadeiam tão violentos fenómenos. Ou ganhamos noção de coletividade e de futuro e atuamos depressa, ou acabaremos todos mal.
O pintor José Cercas nasceu em Aljezur, em 1914, e morreu em Lisboa, em 1992. A casa‑museu que ostenta o seu nome abre ao público no imóvel em que ele morou. Passei a conhecer um pouco da sua obra, mas o que mais apreciei foi uma caixa para máquina de costura, decorada com imagens que representam putti, uma grinalda, flores e motivos vegetalistas. Se José Cercas é o autor desse trabalho de pintura, não sei.
A senhora que guiou os meus passos no Museu Municipal, na Casa‑Museu Pintor José Cercas e no Museu Antoniano relatou a existência de forasteiros que se fixavam em «comunidades alternativas» e denotavam pouco respeito pela lei e pela natureza. Cogitavam, designadamente, erigir casas a seu bel talante, sem respeito pelo urbanismo local. Eu topei alguns desses estrangeiros. Tinham um ar sebento, que me causou nojo.
A Igreja de Nossa Senhora d’Alva (a nova igreja matriz) foi, como referi acima, consagrada na primeira década do século xɪx. A sua aparência monumental não me caiu no goto. No respetivo interior, apreciei o retábulo da capela‑mor, de talha neoclássica, cuja autoria se imputa à oficina de José da Costa, de Faro. Nele se pode admirar uma escultura da padroeira.
Numa das capelas da igreja, devotada a São Sebastião, veneram‑se os crânios de João Galego e Pedro Galego. Informa o povo que, no reinado de D. Manuel I, havia na zona de Aljezur dois lavradores, pai e filho (os ditos João e Pedro), homens tão cheios de virtude que o seu hálito e o seu bafo curavam doenças. Mesmo após a sua morte, as respetivas caveiras continuaram a surtir curas milagrosas. Por conseguinte, estão expostas na Igreja de Nossa Senhora d’Alva. Eis a lenda das Santas Cabeças de Aljezur.