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Não gosto de paternalismos. Na sua afabilidade condescendente, vejo amiúde o objetivo de limitar a progressão de quem está sob a pretensa aba protetora. Não espanta por isso que, no domínio das relações de trabalho, vacile em face do «paternalismo industrial», temo que ele tire vigor à luta do operário por condições justas e dignas.
Por outra banda, não tenho espírito gregário nem sou dado a grupos, vivo feliz a viajar com a minha companheira ou entre quatro paredes a fazer o que gosto. Enjeitaria integrar uma comunidade de vida e trabalho, mas interesso‑me pelo património industrial acoplado a um complexo erguido para satisfazer o globo de necessidades do homem‑trabalhador, seduzem‑me os microcosmos que aliaram a solicitação da fábrica ao contentamento físico e espiritual do assalariado. Vem isto a propósito de visitas que fiz a Tampere (Finlândia), Guise (França) e Crespi d’Adda (Itália).
O centro de Tampere estendeu‑se por uma faixa de terra que separa os lagos Näsijärvi e Pyhäjärvi. O curso de água que os liga tem rápidos e, a fim de aproveitar a energia que eles ajudam a produzir, o engenheiro escocês James Finlayson ali fundou e dirigiu, de 1820 a 1828, uma empresa de construção de máquinas para a indústria têxtil. Em 1828, transformou‑a em algodoaria, que vendeu em 1836 a Carl Nottbeck, Georg von Rauch e William Wheeler. A companhia cresceu, diversificou operações e criou uma escola, um hospital, uma igreja, uma biblioteca, corpos de polícia e de bombeiros, um banco para incentivar à poupança, um lar de mulheres pensionistas, um dormitório para as raparigas solteiras que chegassem à cidade com o intuito de trabalhar na fábrica. Outrossim, garantiu moradia de baixo custo aos trabalhadores. Em 1985, o grupo Asko adquiriu a Finlayson e acabou com a produção no centro urbano. Os imóveis que pertenciam ao universo Finlayson foram reabilitados e hoje acolhem cafés, restaurantes, salas de cinema, museus, um supermercado e serviços de vária ordem.
Em 1846, Jean‑Baptiste André Godin instalou uma fundição em Guise. Anos antes, no seu tour de France, verificara quão más eram as condições de vida dos operários. Porquanto não as queria ver reproduzidas na sua esfera e se inteirara do conceito de falanstério de Charles Fourier, criou, em benefício dos seus trabalhadores e parentela, um familistério na vizinhança da fábrica. A construção de blocos de apartamentos seguiu a preceito a mentalidade higienista de Godin, teve início em 1859 e, tal era a necessidade de fogos, prolongou‑se por mais de duas décadas. O familistério incluía também infantário, escola, mercearia e outras lojas, teatro, coreto, jardim, serviço médico, farmácia e um anexo com lavandaria e piscina. A associação que Godin fundou em 1880 (oito anos antes de morrer) para gerir o seu orbe empresarial — e na qual interessou os trabalhadores — cumpriu mandato até 1968, ano da sua extinção e transformação em sociedade anónima. Esta continuou a explorar a fábrica, mas cedeu os edifícios do familistério, que com o tempo se degradaram. Só no século xx, no âmbito do programa Utopia, financiado com fundos públicos franceses e com dinheiros da União Europeia, os imóveis do familistério ganharam cara limpa e novas serventias (museu, restaurante e uma loja que vai além de simples boutique de souvenirs).
Crespi d’Adda, a cerca de 20 quilómetros de Bergamo, é o lugarejo onde Cristoforo Crespi, capitão de indústria, criou uma algodoaria que laborou desde 1878 até ao primeiro quinquénio do século xxɪ, e que esteve nas mãos da sua família durante mais ou menos cinco décadas. Afora darem emprego na unidade fabril, Cristoforo e o filho que lhe sucedeu proveram às necessidades dos trabalhadores, quadros e respetivas famílias, do berço ao sepulcro: perto da fábrica, construíram casas, escola, um hospital, igreja, um teatro, um centro de cultura e recreio, uma piscina coberta, recinto desportivo, um cemitério onde o imponente mausoléu dos Crespi e as suas alas formam hemiciclo que abre para as sepulturas dos operários e evoca um derradeiro abraço do patrão. Neste mundo havia também uma corporação de bombeiros e um albergue para clientes e fornecedores (a sempre assídua má‑língua dizia que se tratava de casa de prazer). Hoje, as altas chaminés da algodoaria ainda fazem sentinela, mas nada há a temer senão fantasmas.
Quando voltei dos passeios a Tampere, Guise e Crespi d’Adda, interpelei o capitalismo, perguntei‑lhe por que motivo não sobreviveram estas comunidades de vida e trabalho.
Defendo a economia de mercado com atenta dimensão social e creio que o capitalismo continua a ser o sistema económico ideal para organizar a produção e as relações que os homens estabelecem entre si para criar ou transformar bens e para prestar serviços. Mas ando apreensivo com alguns rumos que ele segue, com os caminhos que nele abrem os mais liberais. Não podemos ver a empresa e desperceber o trabalhador. Erra quem só vê o lucro — uma abstração, atrás da qual se pode correr até ao infinito — e não olha às necessidades dos trabalhadores.
Tampere, Guise e Crespi d’Adda avivaram as minhas convicções. Sei que os tempos são distintos e posso parecer saudosista, mas morder‑me‑ia se isto ficasse no tinteiro.