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1. Por lá terem decorrido filmagens da prequela de A guerra dos tronos e em vista dos pregões «A aldeia mais portuguesa de Portugal» e «Aldeia Histórica», temia que Monsanto estivesse inçada de turistas. Mas não. Quando lá fui, a matéria lítica sobrepujava, poucos visitantes calcorreavam as suas ruelas, não dei por muita treta que a eles fosse especificamente endereçada.
Almocei na Adega Típica «O Cruzeiro». Em 2010, estanciei duas semanas em Monsanto e dela guardava boas memórias, já no que respeita à culinária, já no que toca aos tratos. Espreitei o rol de cinco pratos de carne, dois de peixe e um vegetariano, perguntei por pratos típicos da casa e de Monsanto. Judite, a senhora que me serviu, indicou, como especialidade do restaurante, as bochechas de porco preto estufadas e, como bandeira do estabelecimento e da aldeia, o arroz de galo. Adiantou que este era cozinhado, aldemenos, no tempo da matança do porco. Fartas do suídeo, as pessoas comiam arroz de galo. Tal foi a minha escolha, não me arrependi. O prazer continuou com a sobremesa, uma torta de laranja cujo gosto se prolongava na boca. Bebi um vinho tinto fresco e com aroma de frutos vermelhos: Quinta dos Termos, de 2018. Apreciei a refeição e o serviço, acho imperdoável não haver rede wi‑fi.
Diante de mim, almoçaram membros de uma família de Lisboa que recebia um primo vindo de longe. Dirigindo‑se sobretudo a esse parente, o senhor mais velho gabava‑se, falava das suas proezas na Guerra Colonial. A nora ouvia‑o com um tédio inenarrável, decerto já conhecia as estórias em pauta. Condoí‑me do seu fastio. Talvez a maior parte dos seus versos domésticos rime com desfortuna e com toxicidade e isso torna ainda mais pesado o frete aceite em nome do sangue. Conjeturo‑o com amargura interior, mesmo com aspereza, pois recordo moléstias e escabrosidades de cariz familiar que, quando a minha mãe estava viva e pelo amor que lhe tinha, tolerei e calei.
Com igrejas e capelas fechadas, simplesmente deambulei por Monsanto. Agradou‑me o jogo das casas com as rochas, detive‑me defronte dos conjuntos bizarros que dele resultaram. Várias vezes contemplei a paisagem circundante, ela parecia não ter fim. Em virtude de os templos se encontrarem encerrados, perdi vontades de particularização. Ainda assim, a minha retentiva guardou a imponência do castelo, a elegância da Torre de Lucano e a distinção do Solar do Marquês da Graciosa.
Na esplanada do café O Baluarte, desfiei, junto de dois monsantinos, causas do meu encanto pelo concelho de Idanha‑a‑Nova. Escutaram o meu relato e contrapontearam com o que os preocupa e agora também a mim me inquieta, pelos factos e não pela nacionalidade dos agentes. Brasileiros e americanos compram larga fatia dos terrenos de regadio e neles fazem plantar amendoeiras e nogueiras, assim roubando espaço para cultivar o que alimenta o povo, a saber, trigo, milho e centeio. Deste jeito, na «aldeia mais portuguesa de Portugal», topei com uma triste imagem do meu país, um retrato que se multiplica e no qual vejo o privilégio do investidor estrangeiro e a piora das condições de vida do íncola.
2. A aldeia de Penha Garcia estende‑se sobre uma encosta cujo viso é dominado por penedia onde sobrenadam as muralhas de um castelo.
Cheguei defesso e apenas me movia a vontade de admirar, na Igreja Matriz, a escultura de pedra de Ançã que representa Nossa Senhora do Leite. O templo estava fechado, só abre para a missa de domingo. Prudência Júlia, uma idosa da terra com quem entabulei conversa, dispôs‑se a mostrar‑me uma réplica dessa imagem que se encontra num nicho, noutro lugar da povoação. Segui‑a e atentei no exemplar de imitação, a que não achei graça nenhuma. Depois, vimos alguns dos icnofósseis — no linguajar local, «cobras pintadas» — que amplificaram a notoriedade de Penha Garcia.
Acabámos por ficar na charla. De mim, pouco mais quis saber além da proveniência e do estado civil. Penha Garcia era para ela motivo de um orgulho que radicava na história e no caráter rijo das suas gentes, mas também naquilo que o urbanita consideraria anódino: a visita de Catarina Furtado à terra. Ufanava‑se de ser a pessoa mais esperta da sua família e de ter retido tudo o que aprendera na escola.
Sem moralismos, ciente de que a minha interlocutora nascera no tempo escuro do salazarismo e no lado esquerdo do mundo, empenhei‑me em combater a sua bossa fácil para o preconceito — «As brasileiras comem os homens todos», dizia — e o juízo primário segundo o qual os médicos só pensam em dinheiro. Mas a verdade é que em mim se presentificou a ingratidão e a falta de reconhecimento que Fernando Namora imputou a algumas criaturas da província de alma pequena.