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O segundo dia que consagrámos a Viseu foi, também ele, ungido pela boa fortuna. Sem vislumbre de turismo massificado, beneficiámos dos favores da meteorologia, comemos bem, lidámos com almas francas, distinguimos património de primeira água.
Transposta a Porta do Soar, elemento da muralha afonsina (o início da construção desta teve lugar no reinado de D. João I e o termo durante o reinado de D. Afonso V), dirigimo‑nos para a Capela de Nossa Senhora dos Remédios, que, consoante se pode ler no lintel que encima o vão da porta, data de 1742 e foi edificada graças a «esmollas dos devotos». Agradou‑nos em virtude da conjugação da planta octogonal com a ousia bem‑proporcionada e com a silharia de azulejos.
Seguiu‑se a visita à Catedral de Santa Maria, que conserva ressaibos de igreja‑fortaleza e é campo no qual convivem vários gostos arquitetónicos. De lá, trouxe impressões de riqueza ornamental, mas não de um todo harmonioso. Carregada de motivos de interesse, o escriba aficionado da arte religiosa aqui dá conta de alguns.
Desde logo, a cobertura quinhentista das naves, separadas por pilares — com colunelos e capitéis dourados — de que se lançam as nervuras em ogiva das abóbadas. Entre tais nervuras, intercalam‑se calabres e respetivos nós e por isso se fala de «abóbadas de nós». As abóbadas fecham com bocetes, que outorgam nota adicional de requinte àquele céu de pedra.
A capela‑mor foi o que mais gostei de ver. O respetivo teto, de feição semicircular e pintado a fresco, é espaço do brutesco e inclui medalhão com Nossa Senhora da Assunção. O cadeiral, de madeira do Brasil, leva ornatos dourados. E o retábulo barroco, de talha dourada, foi concebido por Santos Pacheco e é empresa de Francisco Machado. No trono, sobressai uma escultura gótica: a imagem de Santa Maria, igualmente conhecida por Senhora do Altar‑Mor.
Guardo igualmente boa recordação do cadeiral existente no coro alto e da Capela dos Santos Brancos, uma das que abre para o claustro. Ela requer demora para exame do retábulo de pedra de Ançã que evoca a Lamentação, quiçá lavor de João de Ruão, no qual todas as figuras são efigiadas em relevo de pedra branca.
Depois da referência a tesouros de tempos idos, destaco apenas, dentre as peças expostas no museu catedralício, a dramática Última Ceia, do pintor moçambicano Samate Mulungo (1939‑2012).
Almoçámos no restaurante Palace, sobre ele falarei noutro escrito.
A Igreja da Misericórdia, dos séculos xvɪɪɪ e xɪx, exibe face ancha e harmoniosa. No seu interior, de estilo neoclássico, faça‑se referência a dois grupos escultóricos, ambos de madeira estofada, dourada e policroma. No primeiro desses grupos, que representa Nossa Senhora das Dores junto dos pés do Crucificado, é notável o jeito de veicular a dor da Senhora, que tem as mãos unidas e dirige o olhar para cima, projetando sofrimento que não deixa ninguém indiferente. O segundo grupo escultórico recria a Visitação e nele admiro a expressão do movimento, do gesticular de Maria e da sua prima Isabel.
O órgão de tubos e o púlpito formam um composto aparatoso, merecedor de sopontadura. Considerando a volumetria do corpo da igreja, tal conjunto é grande demais, não fica bem ali.
Caminhámos em ruas de comércio, atentámos em janelas manuelinas e no Solar dos Condes de Prime, edifício barroco no qual, de modo furtivo, vimos o interior da capela, onde apreciámos o forro azulejar e o retábulo de talha dourada.
A Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo estadeia frontaria elegante e de pendor verticalista. O seu interior é divicioso, apresenta múltiplos pontos de interesse — imaginária, retábulos de talha dourada, azulejaria, cobertura abobadada de madeira com pintura de Pascoal Parente. Assombrou‑me a exuberância do retábulo‑mor e o arco cruzeiro cercado de talha dourada que começa nos dois retábulos laterais.
Escreveu Alexandre Herculano, se bem o interpreto acerca de quem o esperava em Viseu: «Os elegantes da provincia iguaes na elegancia aos de Lisboa, superiores nas formas que indicam a força sem danar á delicadeza.»[1] Não sei como andamos de gajés em Lisboa. Na cidade beirã, vi pessoas que se cuidavam e gente que não fazia caso da aparência. No que a esta diz respeito, não discerni grande diferença entre os viseenses e os íncolas de outras terras portuguesas.
[1] HERCULANO, Alexandre, Scenas de um anno da minha vida e Apontamentos de viagem, coordenação e prefácio de Vitorino Nemésio, Lisboa, Rio de Janeiro – São Paulo – Belo Horizonte, Livraria Bertrand, Livraria Francisco Alves, 1934, p. 184.