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Bar do edifício Jacques Delors. Um homem bojudo presumia da sua condição de énarque e das áfricas que fizera numa missão em país longínquo; visivelmente por força de relação hierárquica, os seus acompanhantes pasmavam como basbaques. Duas senhoras urdiam conspirações comezinhas. A presença de militares recordou‑me que Bruxelas continuava ameaçada de terrorismo.
Repeti o pedido que faço na cafetaria do meu local de trabalho — «un lait russe déca, très léger, tiède et sans mousse» — e nem quero imaginar o que a tal propósito diria Ivone Mendes da Silva, mordaz autora que escreveu: «De manhã no café ouvi um homem pedir uma meia‑de‑leite morna sem espuma em chávena normal e pensei que ali havia excesso de pormenores ainda que lassos. Uma forma de gongorismo tépido. E uma grande picuinhice.»[1]
A colega sueca que me acompanhava pediu um bolo de arroz, a minha madalena de Proust. Fui transportado para as férias que, na infância e na adolescência, passava em Barcelos com avós maternos que me enchiam de afeição e a quem eu queria muito. O meu avô, um homem que viria a morrer de amor, levava‑me à pastelaria do largo da Porta Nova onde eu comia um bolo de arroz. Depois, íamos à igreja do Bom Jesus da Cruz. Hoje afervoro‑me no Barroco, mas nesses tempos a igreja era lugar de mecânica oração e de pedir a Deus que fizesse de mim craque do Futebol Clube do Porto, não olhava à beleza da sua arquitetura. Por fim, encaminhávamo‑nos para o estádio Adelino Ribeiro Novo com o intuito de assistir a um jogo de futebol. Recordei o Djair, ágil e elástico guarda‑redes do Gil Vicente, confirmação de que nem só no circo há acrobatas. Ao anoitecer, a minha avó preparava um arroz com cheiro e sabor a carinho e eu dirigia‑lhe palavras extremosas.
Sou funcionário e a vida que levo respiga muitas vezes o verso «a minha alma não acompanha a minha mão», do Poema dum funcionário cansado, de António Ramos Rosa. Naquele dia, a alma arrimada às susoditas memórias ajudou‑me a suportar sem pena nem protesto a dura tarde de trabalho que me esperava e — lanço mão do mesmo poema — eu não fui «um funcionário cansado dum dia exemplar».
[1] SILVA, Ivone Mendes da, Dano e Virtude, [s.l.], Língua Morta, 2017, p. 123.