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Leitor, fie do que aqui escrevo: A Estalagem, em Arronches, é um dos magníficos restaurantes de Portugal. A decoração ata o cliente à ruralidade, inclui tarros, foices, pás, cangas e uma coleção de chocalhos. E o passadio faz dele santuário da bona‑chira.
As sopas atestam a presença do Alentejo — sopa de cação, sopa de tomate, açorda, açorda de perdiz. Do rol de pratos especiais da casa, constam os pezinhos de coentrada, o lacão panado no forno, as bochechas de porco estufadas, as migas de pão com carne de porco preto, a miolada com carne de porco preto, o feijão branco com cabeça de porco e os túbaros de fricassé. Como se espera em Arronches, o porco preto dá pano para mangas — plumas, secretos, espetadas, bitoques e hambúrgueres. O vegetariano não fica a ver navios, é só pedir faláfeis, croquetes de trigo e cenoura ou então escolher entre os hambúrgueres e as lasanhas para ele criados. Nos peixes, ainda sobra engenho para a feijoada de chocos e para os filetes de peixe‑galo com migas de camarão. A lista de sobremesas é um cartaz de mimos: entre outros, sericaia, toucinho rançoso (leva água, açúcar, amêndoa, gila e gema de ovo) e migas doces, em cuja composição entram calda de açúcar, pão, gema de ovo, amêndoa, canela e limão.
Escolhi lacão panado no forno — o pernil do minante é cozido, panado e depois vai ao forno — e migas doces. Ambos dignos de césar romano. A garrafeira tem muito vinho alentejano. Bebi um tinto Carlos Reynolds que com brio acompanhou os primores do pasto. Não bastasse o ramalhete, o serviço é boníssimo e os preços são decentes. Cinco estrelas e todas as estrelas que eu possa dar.
Assinalo que o cação, acima referido, se tornou peixe frequente na mesa do Alentejo em virtude de permanecer idóneo para consumo durante algum tempo, critério indispensável nos longes em que não havia boas condições de conservação e transporte. Levá‑lo do litoral para o interior a fim de aqui ser cozinhado era, pois, viável.
Tomada aos mouros por D. Afonso Henriques em 1166, Arronches tombou de novo nas mãos daqueles e foi, depois, resgatada em 1235 por D. Sancho II. Caiu outra vez em bornal sarraceno e só voltou para o orbe luso em 1242, por artes de D. Paio Peres Correia. Mais tarde, tornou a jugo de Castela e foi reconquistada por D. Nuno Álvares Pereira em 1384. Em 1661, chegou a ser ocupada pelas tropas de D. João de Áustria e, em 1712, foi alvo de investida espanhola. Quem siga d’A Estalagem para o centro verá, do seu lado esquerdo, um sinal do tempo em que Arronches foi praça de guerra: a Torre da Cadeia, à qual estão adossados imóveis sem graça.
A Igreja Matriz é exemplo de sincretismo, nela convergem vários estilos. Aí apreciei a diversidade de capelas, dentre as quais destaco as cinco que a seguir refiro. Na Capela dos Azulejos, parcialmente forrada com azulejos do século xvɪɪ, reina um órgão de bela aparência, do século xvɪɪɪ, obra de um mestre genovês. A capela‑mor tem retábulo de mármore estremocense, decorado com talha dourada, e apresenta a imagem da padroeira, Nossa Senhora da Assunção, no nicho. Um pelicano e as suas crias saltam à vista no teto abaulado da ousia. À semelhança de Cristo, que deu o seu sangue para alimentar os outros, o pelicano, na falta de cibo para os filhotes, arranca pedaços da sua carne e dá‑lhos. Na Capela de Nossa Senhora do Rosário, avulta o teto em abóbada de nervuras, pintada e rebaixada, e também o retábulo de talha dourada e policromada. Já a Capela do Santíssimo Sacramento leva o visitante a desviar os olhos para a cobertura abobadada e dividida em caixotões. Por fim, num registo simples, a Capela do Batistério abriga uma pia batismal de mármore, do século xvɪɪɪ, uma tela que representa o batismo de Jesus e ainda uma edícula, com moldura de mármore, para guardar os santos óleos.
O coro alto da Igreja Matriz serve desígnio nobre: acolá funciona o Museu de Arte Sacra de Arronches. O respetivo acervo integra, entre outras coisas, imagens de roca, esculturas, livros litúrgicos, ex‑votos, bandeiras processionais de confrarias e um belíssimo sacrário de altar.
A Igreja Matriz, os paços do concelho — casa patrícia do século xvɪ — e o conjunto de imóveis da Santa Casa da Misericórdia — torre com olhais coroada por coruchéu bulbiforme, capela com fronte em empena de bico e edifício do antigo hospital, com janelas de sacada — abrem para a Praça da República, igualmente circundada por casario alentejano. Se a isso juntarmos as árvores de fruto nela plantadas, depressa imaginaremos uma praça de airosa aparência regional. Conjetura vã. O atafulhamento de carros gera a sensação de bololo.
Antes de deixar Arronches, ainda caminhei em zona campeira e desafogada, próxima do rio Caia, e aí vi a aperaltada Fonte do Vassalo, reinando entre dois bancos cujos espaldares estão ornamentados com azulejaria que reproduz um quadro rural, num deles, e cenas galantes, no outro.
Já na freguesia de Esperança, visitei o Centro de Interpretação da Identidade Local, que opera nas instalações de um antigo lagar de azeite. Confesso que, mais do que os meios de produção do ouro líquido, interessou‑me a arte sacra: três peças de barristas portalegrenses, do século xvɪɪ, e uma tábua de intenções e missas de obrigação, de madeira, do século xvɪɪɪ.
Das latitudes em que andou, retém o viajante experiências, interlocuções, lugares, obras e saberes que o marcaram. De Arronches, terra do montado e do porco preto, guardo gratas memórias da gastronomia, da arte sacra e do Alentejo que se solta em liberalidades de luz.