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Não aguentei muito tempo no Cabo de São Vicente. Depois de observar o velho forte, o farol e a escultura de Richard Grahne que homenageia São Vicente, dei de frosques. A área não é grande e por lá andava um magote de gente, gente barulhenta e destituída de critério.
A visita a um lugar como a Fortaleza de Sagres vale por aquilo que se observa in situ, por se pensar no significado histórico do que está à vista, pelas interrogações que suscita. Assinalo, por exemplo, que o padrão ali existente reproduz o monumento de pedra que os navegadores portugueses levantavam nas terras por eles descobertas. E, como outros antes de mim, pergunto que arcanos esconde a figura circular que parece ser uma rosa dos ventos. Desde logo: quando foi construída?
O meu orgulho lusitano apreciou a presença de centenas de pessoas, a minha face crítica deplorou que muitas delas ali se apresentassem com o mesmo estado de espírito que as conduziria à Disneylândia. Ouvi um trintão machucho com bochechas fartas dizer à família que «isto é só pedra, importantes são as pessoas e o sol». Ele nunca poderia entender o que Miguel Torga escreveu: «Doido de terra, de mar e de história (que é aqui onde em Portugal as três coisas se vêem sem ninguém as poder diminuir nem aumentar), pus‑me a calcorrear estas pedras roídas de saudade na mira de encontrar atrás de alguma um Homem português que fosse o verdadeiro Infante, um piloto, ou mesmo qualquer apagado grumete seu, sem glória e sem nome. Nada.»[1]
Entra‑se na fortaleza por um vão aberto num lanço de muralha situado entre baluartes. Lá dentro, dei uma volta demorada durante a qual o meu espírito fugiu. Mudou‑se para o que terá sido a praça no século xv e entreteve‑se com a relevância, para as Descobertas, de Sagres e do infante D. Henrique (tenho presente, ainda assim, que a escola náutica em Sagres talvez resulte de efabulação).
Gosto de arquitetura religiosa e de arte sacra, mas pouco tenho a dizer acerca da Igreja de Nossa Senhora da Graça, que fica no recinto da fortaleza e precisa de obras. Vem do século xvɪ e foi edificada no local onde, por iniciativa do infante D. Henrique, havia sido construída uma igreja, consagrada a Santa Maria. A fronte tem dois panos, o principal, delimitado por cunhais, e o secundário, que corresponde à torre dos sinos.
Qualquer lusitano que tenha dois dedos de testa e passeie no interior da Fortaleza de Sagres sentirá o peso da história e o orgulho reportado à perícia e à valentia de quem participou na expansão portuguesa, tão diversas das que são hoje exibidas pelos cientistas de rede social e pelos heróis de rede social.
No que me toca, destaco, do que vi naquele promontório, a mostra permanente do centro de exposições. Versa sobre as Descobertas e deixou‑me sinal de passado vivo, não apenas por ser impressiva, mas também, com tristeza o refiro, por me recordar que o progresso moral — e, agora, mesmo o progresso material — não vem acompanhando a medrança científica e civilizacional: atente‑se nos milhões de pessoas que vivem em situação de escravatura e no rebuliço que vai pelo mundo (crise climática, pandemia, guerras…), gerador de pobreza extrema e de migrações, fatores que ocasionam a mais aviltante sujeição.
Na exortação apostólica Laudate Deum, de 4 de outubro de 2023, o Papa Francisco teceu considerações pertinentes a tal propósito. Escreveu que os efeitos das alterações climáticas recaem sobre os mais vulneráveis e recordou o que disseram os bispos africanos nas Conferências Episcopais de África e Madagáscar: elas evidenciam «um exemplo chocante de pecado estrutural», em causa não está simplesmente uma questão secundária ou ideológica (cf. Laudate Deum, n.o 3). Os maus‑tratos que os humanos infligiram ao planeta são irreversíveis, pelo menos durante centenas de anos, e, a partir de agora, só é possível evitar danos ainda maiores (cf. Laudate Deum, n.os 15 e 16). O brutal avanço tecnológico outorga avassaladora predominância aos que detêm o conhecimento e, sobretudo, o poder económico para dele beneficiar (cf. Laudate Deum, n.o 23). Essa concentração de poder é perigosa e muita gente não está ciente dela.
[1] TORGA, Miguel, Diário, volumes I a IV, 5.ª edição conjunta, Alfragide, Publicações Dom Quixote, 2010, p. 119.