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O infante D. Henrique teve casa na povoação de Raposeira ou nas suas redondezas. Aí terá recebido Luís de Cadamosto, navegador veneziano que acabou por ficar ao serviço da coroa portuguesa. A aldeia não me demorou. A igreja matriz, consagrada a Nossa Senhora da Encarnação, estava fechada e a respetiva frontaria não me prendeu. Demais, ao lado do portal de inspiração manuelina, encontra‑se suspenso na parede um painel de informações que, além de ser inestético, rouba a graça que essa face da igreja pudesse exibir.
Já a Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe, próxima de Raposeira, mereceu o meu vagar. Naquele torrão, aí ouvia missa o infante D. Henrique.
Reza uma das versões da lenda que, nos anos vinte do século xɪv, foi encontrada, na província de Cáceres, uma imagem de Nossa Senhora, atribuída a São Lucas, que havia sido escondida em 711, aquando da invasão por parte dos Mouros.
Um vaqueiro, Gil Cordero, perdeu um dos seus animais. Procurou‑o e, nas cercanias do rio Guadalupe, deparou com o respetivo cadáver. Dispunha‑se a esfolá‑lo, para fazer uso da sua pele, mas o bicho ressuscitou. Apareceu uma figura feminina, que se identificou como mãe de Jesus Cristo, pediu a Gil para divulgar a notícia relativa ao sucedido e ali regressar, na companhia de outras pessoas. Escavariam a terra e achariam, então, a sua imagem, que deveria ser posta num pequeno edifício a erguer no local.
O vaqueiro comunicou a ocorrência às autoridades civis e religiosas, mas ninguém se fiou dele. Já em casa, deu com muita choradeira: o seu filho tinha morrido. Recordou‑se do que acontecera à vaca, ajoelhou‑se e encomendou a sua sorte a Nossa Senhora. O jovem voltou à vida. Na sequência de tão assombroso fenómeno, várias pessoas, mormente clérigos, foram com Gil ao sítio em que este topara com o animal morto. Revolveram a terra e acharam a imagem da Virgem, documentos relativos à sua história e outras relíquias. A imagem viria a ser acomodada numa ermida que ali construíram.
Antes da Batalha do Salado (1340), Afonso XI confiou o seu destino à Virgem de Guadalupe. Em decorrência da vitória das tropas dos reis cristãos, reformou o templo, que mais tarde se converteria num importante centro de romagem.
A adoração a Nossa Senhora de Guadalupe atravessou a fronteira com Portugal e a ermida situada no concelho de Vila do Bispo terá sido levantada ainda no século xɪv, depois de 1340. Subsistem, todavia, fontes que imputam a respetiva edificação aos templários, durante o século xɪɪɪ.
As águas do mar, perto de Raposeira, foram palco de atos de pirataria e certo é que a Virgem de Guadalupe se tornou especialmente venerada por homens do mar. Protegia os navegantes e também os cristãos feitos prisioneiros pelos corsários muçulmanos. Em Espanha, Cristóvão Colombo cultuou Nossa Senhora de Guadalupe.
Vista de fora, a Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe é muito bonita, sobretudo por causa do contraste entre a cor branca das paredes e os tons (ocráceos, avermelhados, beges, acastanhados…) do grés nos portais, nos degraus, na rosácea da fachada principal, nos cunhais e nos contrafortes. A frontaria, na qual se inscrevem uma rosácea e um portal de arco em ogiva, tem um só pano, que termina em empena de bico e está balizado por cunhais. Uma cruz de pedra, recuada relativamente ao vértice da empena, encima o templo.
Do interior da ermida, destaco a capela‑mor, a sua abóbada de nervuras artesoada, os capitéis e bocetes com motivos de tipo antropomórfico, zoomórfico e fitomórfico. Talvez esse programa decorativo se relacione com a devoção dos marujos à Virgem de Guadalupe — os rostos esculpidos nos capitéis efigiavam gente do mar a viver em cativeiro?
Reporta‑se a São Lucas a representação, no capitel do lado direito do arco cruzeiro, de uma cabeça de bovino e de uma cabeça de humano? Lembre‑se que o touro vai amiúde associado à imagem de São Lucas e que a este se adjudica a feitura do escorço de Nossa Senhora desenterrado na zona de Guadalupe.