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Depois de estacionar o carro, notei que estava na Rua Adelaide Cabete e alegrei‑me com o tributo a uma humanista, republicana, feminista e higienista que admiro. Aliás, penso que o feminismo beneficia os homens, pois liberta‑os de um machismo que lhes impõe padrões e condutas e contribui para o empoderamento das mulheres, requisito para a felicidade dos cavalheiros que realmente as apreciam.
Era hora de dar trato ao estômago, entrei no Flor de Sal. A sala de refeições é aconchegante, funde rusticidade e bom gosto. A decoração cria ares de mercearia dedicada à venda de produto gourmet e faz‑se de adornos como placares com cartazes publicitários de marcas portuguesas, garrafas e vasilhas de vidro colorido, canecas e faiança, sem esquecer uma balança tradicional. Tudo sugerindo aprazível estilo retro. O cardápio, mais rico em carnes que em peixes, não é extenso e da sua leitura logo ressuma a impressão de produtos de qualidade. Manduquei um queijo atabafado de cabra, lombos de robalo fresco que passaram pelo brasido, acompanhados por batatas e legumes, e um arroz‑doce que se libertara da receita codificada e sabia a erva‑doce. O serviço foi cortês, dei 18 valores ao Flor de Sal. Em relação à clientela, pareceu‑me feita de gente instalada na vida e incapaz de levar a cabo o mais insignificante desbordamento, em público ou em privado.
Segui para o Museu Nacional Ferroviário, que retrata a evolução da ferrovia em Portugal, de meados do século xɪx a tempos recentes. O início da visita apraz aos entusiastas de arquitetura, que ali têm um edifício desenhado por Cottinelli Telmo e construído nos anos quarenta do século xx. Nele funcionou um supermercado onde, mediante preço e condições favoráveis, os trabalhadores da companhia ferroviária se podiam abastecer de bens essenciais.
Quanto às obras expostas, menciono: Início dos trabalhos de construção do caminho de ferro, aguarela de António Joaquim de Santa Bárbara; duas bilheteiras e um porta‑horários, todos de madeira, peças de valor — pois vão sumindo das estações — e anacronismos cheios de pátina que, para a minha geração, têm pinta nostálgica; um painel proveniente da estação de Urrós, na Linha do Sabor — combina a azulejaria azul e branca com aqueloutra em que se estampou a esfera armilar manuelina e o escudo de Portugal; as fotos que mostram membros de diversos grupos profissionais do setor ferroviário, por exemplo, um fator de estação, operários de via, um revisor de material e uma guarda de passagem de nível; a locomotiva cor de laranja feita de legos, obra de André Pinto, homem saudoso do «monstro laranja» que via chegar à gare do Fundão.
Por viver no inseguro mundo hodierno e prestar atenção à esfera social, agradou‑me uma panóplia de objetos e fotografias que patenteavam a oferta, aos trabalhadores ferroviários e às respetivas famílias, de cuidados médicos e de condições existenciais dignas.
No que tange ao material circulante à vista na Rotunda das Locomotivas, gostei, mais que dos paquidermes, da peça petiz, uma colorida locomotiva a vapor, inglesa, que terá sido usada para prover de materiais de comunicação, víveres e armamentos os que se achavam em frentes de batalha e que, depois, foi comprada pela Empresa Carbonífera do Douro e empregue na via‑férrea do Couto Mineiro do Pejão. Onde menos esperava — numa locomotiva —, vi charme e o sortilégio do orbe ferroviário.
O outro material circulante também desperta interesse. Valorizei, desde logo porque nunca de tal havia tido notícia, a carruagem em que se procedia ao pagamento de vencimentos do pessoal das estações, da via e das passagens de nível, e aquela que servia para prestar serviços médicos. A primeira, de 1913, contava com divisões para dormir — as viagens duravam dias —, casa de banho e posto de atendimento. A segunda, de 1888, reunia sala de espera e espaço para consultas e tratamentos. Semelhante valência tinha particular utilidade para os trabalhadores que viviam longe dos principais centros urbanos.
O transporte ferroviário está bem musealizado no Entroncamento. Resta fazer figas para que os comboios que percorrem o país satisfaçam os seus utentes. Nunca fui fã da via‑férrea. Pesam‑me na memória os trains sujos da Bélgica, a estação de Coimbra‑B (um nojo, um verdadeiro nojo), as viagens feitas à sexta‑feira, quando era estudante, em carruagens pejadas de gente, e ainda os programas maçadores que, quando trabalhava em Lisboa, via passar nos ecrãs das composições que ligavam Coimbra à capital (pareciam feitos para que ninguém os quisesse ver). Porém, reconheço que, perante o desregramento climático e os problemas ambientais, é preciso multiplicar o uso do comboio, em prejuízo de outros meios de transporte. É fácil persuadir um alemão ou um suíço a fazê‑lo, eles estão no centro da Europa, mas os poderes públicos lusitanos têm de pôr em prática políticas que, longe de proposições eivadas de sanha neoliberal, salvaguardem o caminho de ferro e garantam conexões internacionais e cobertura apropriada do território português, assim convencendo as pessoas a viajar sobre carris.