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1. Numa entrevista, Sofia Arruda deu notícia do assédio sexual de que foi alvo por parte de «uma pessoa com muito poder dentro de uma estação de televisão». A atriz resistiu às investidas do indivíduo em apreço e disse que ele a ameaçou: nunca mais voltaria a trabalhar ali. Durante alguns anos, ficou mesmo sem lida nessa estação.
Um chorrilho de censores das redes sociais criticou Sofia Arruda em virtude de ela não ter nomeado o homem que a importunou e de só agora fazer a denúncia. Discordo de tais juízes ad hoc. Abstêm‑se de analisar o problema do assédio e o do machismo, mas depressa pedem contas a Sofia. Depois de ouvir vítimas de assédio sexual — mulheres, na sua maioria —, penso que, em certa medida, cabe ao ofendido decidir quando fala e o que descobre. Há aqui um processo penoso, um elemento íntimo e pessoal digno de particular salvaguarda. Se Sofia fosse obrigada a dizer quem a molestou, a agrura seria maior e talvez se calasse. A sociedade tuga, com focos significativos de machismo e o vezo de culpabilizar a mulher, tampouco propicia a denúncia do assédio sexual. Embora convicta de que era a vítima e de que não tinha feito nenhum gesto aguçador de abordagem extraprofissional, a atriz sentiu culpa por, eventualmente, ter «dado a entender alguma coisa». Acresce que, face a criaturas poderosas, as vítimas não podem esperar o respaldo dos videirinhos nem dos que colubrejam nas teias de favores e submissões.
De resto, se houvesse dito o nome, Sofia seria qualificada de vingativa, imputar‑lhe‑iam a caça de algum benefício. E teria de produzir prova, como é próprio a uma comunidade de direito.
O assédio sexual é um mundo torpe de incómodos e entraves à autodeterminação, de pessoas que reprimem a sua vontade de falar. Sofia Arruda é credora de aplauso, o passo que deu ajuda a quebrar barreiras e levará outras vítimas a perceber que não se acham sós. Não se tratou de retirar o pino da granada e fugir. De modo mediato, a sua atitude concorrerá para formar mais gente apta a distinguir a sedução da impertinência.
O juízo que defendo pode ensejar um quadro em que recaiam suspeitas sobre indivíduos com perfil idêntico ao do homem que atazanou a atriz. Contudo, sopesando os valores a proteger, dou primazia, consoante referi, à determinação pelo ofendido do teor da denúncia. De qualquer jeito, a fazer fé nas palavras de Sara Barros Leitão e de Wanda Stuart, o círculo profissional em causa sabe quem é o sujeito. No futuro, provavelmente todos nós conheceremos a sua identidade.
2. Abstraindo dos casos, mais graves, de coação sexual e de tentativa de violação, o assédio sexual no trabalho é punido nos termos do artigo 29.º do Código do Trabalho (CT) e do artigo 170.º do Código Penal (CP). A prática de assédio constitui contraordenação muito grave e outorga à vítima o direito de indemnização (artigo 29.º, n.os 4 e 5 do CT). A norma do CP prescreve que «importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo‑a a contacto de natureza sexual» é punível com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave não couber por força de outro preceito legal. A importunação sexual é um crime semipúblico, ou seja, o procedimento criminal depende de queixa do ofendido.
A seguir à assinatura e à ratificação, pela República Portuguesa, da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul), a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) recomendou que o assédio sexual passasse a ser um crime autónomo e público. Boas razões militam nesse sentido: há pessoas que, por vergonha, receio ou falta de crença no sistema, não participam o seu caso. Ora, no que respeita à prática de crimes públicos, o procedimento criminal não depende de queixa da vítima, o Ministério Público inicia o processo depois de ter notícia do crime (por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia — artigo 241.º do Código de Processo Penal). Em decorrência do que acima defendi, hesito em sufragar a proposta da UMAR, pois temo que se obrigue a vítima a reviver um passado de dor quando ela ainda não está capaz disso.