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Nas cercanias do complexo que integra o Castelo dos Templários e o Convento de Cristo, assim como dentro do recinto fortificado, a grandiosidade da matéria lítica impressiona. O castelo é quase tão velho como Portugal, foi construído no século xɪɪ pelos templários, sob instrução de Gualdim Pais. Cria perceções de robustez e segurança, reforçadas pelo imponente alambor, o mais extenso do país. Transpus a Porta do Sol e, antes de dar carga ao espírito no Convento de Cristo, distraí‑me no jardim com laranjeiras, ciprestes, cedros, pinheiros, plátanos, buganvílias, buxos, agaves, ligustros, aroeiras, evónimos e outras espécies vegetais.
No Convento de Cristo, gostei muito do revestimento azulejar da Capela dos Portocarreiros e, imitando o comum dos visitantes, demorei‑me na charola e com tardança observei a janela manuelina da Sala do Capítulo, janela cuja trama de pedra é obra de Diogo de Arruda e cujo programa decorativo — que inclui a cruz de Cristo, a esfera armilar, as armas régias, ornatos vegetalistas e outros relacionados com o mar — evoca o rei e a pátria, os Descobrimentos e o império ultramarino português. Tudo assente em raízes de carvalho que um homem de barba sustenta (autorretrato do próprio Diogo de Arruda, quiçá). Eis uma composição que alia exuberância e harmonia, e que mesmo os sinais da passagem do tempo parecem embelecer.
A charola foi erguida no século xɪɪ pelos templários, serviu‑lhes de oratório. Era um templo românico, em rotunda, com aparência de construção fortificada e instrutura onde ecoa o que eles viram no Oriente, durante as Cruzadas. No século xv, foi alvo de alterações promovidas pelo Infante D. Henrique. No século xvɪ, a mando de D. Manuel, foi edificada uma igreja conventual e a charola deveio a capela‑mor dessa igreja (para executar a ligação, alguns tramos da parede da charola foram abatidos). Recebeu então o essencial do riquíssimo adorno que, na conjugação com as formas, esmaga o circunstante. Entre os ornatos contam‑se pinturas, esculturas, talha dourada, trabalhos em estuque e em guadamecil. Pela expressividade e modo de comunicar dor, saliento a escultura, sob arco do corpo central da charola, que representa Nossa Senhora e São João Evangelista.
Desci à cidade. O posto de turismo funciona num bonito edifício amarelo dos anos trinta do século xx e capta a atenção graças à janela de cunhal, ao pórtico alpendrado, aos painéis de azulejos e aos vitrais das janelas. Informaram‑me do restauro que mantinha encerrada a Igreja de São João Batista e fizeram‑me ver que, por ser segunda‑feira, do mais que pretendia visitar só a Ermida de Nossa Senhora da Piedade teria a porta aberta.
Emmentes, a fome apertou, precisava do viático. Almocei no Infante. O meu giro por terra lusa serviu para paliar um dos males de que padeço na Bélgica, a gastronostalgia. Um dos seus sintomas é o anelo de comer arroz de cabidela, iguaria que nunca consegui provar fora de Portugal. Do cardápio do Infante constava cabidela de galinha, ataquei‑a com sofreguidão. Cabidela de chupeta, sem exageros ou incorreções nos temperos. Para remate vieram esponjosas fatias de Tomar, juntei prazer e lambarice local. A jovem mulata que me atendeu era eficiente, escultural a levantar para o altivo, tinha cabelo com rabo de cavalo. Não condizia com o seu porte a última pergunta que me fez: «Vai desejar faturinha?»
A referência às fatias de Tomar aproposita um entremeio no qual começo por ceder a palavra a quem sabe. «Não contam, por adjacentes, a manteiga de untar a forma e o açúcar e a água da calda. A matéria‑prima é mesmo só uma: gemas de ovos. E não consta que a inventiva culinária tenha conseguido atingir o estado supremo da leveza e da graça doceira como aqui, só com gemas de ovos, eles próprios símbolos da criação.»[1] Quanto à gastronostalgia, é conceito que, ao menos na língua portuguesa, foi utilizado primeiramente, no romance policial uma aventura inquietante, por José Rodrigues Miguéis[2], extático ao descobrir uma soberba sopa de nabos com feijão branco, feita à maneira portuguesa, em Boitsfort, um torrão de Bruxelas. A trama dessa obra decorre na capital da Bélgica, cidade onde o autor viveu, e o que lá se encontra mantém desassossegadora pertinência: as clivagens linguísticas que fendem a Bélgica, o leviano apontar de dedo ao estrangeiro, a opinião pública deformada pelos meios de comunicação social, a antecipação de desvarios que assolaram a Europa.
A caminho da Ermida de Nossa Senhora da Piedade, parei diante da Capela de São Gregório, formosa empresa com nave octogonal, galilé semicircular e portal manuelino. Quando arribei ao alto no qual reina a ermida, descansei a vista na vastidão das terras que perante mim se espraiavam. Aquele sítio em que parecia não haver vivalma encorajava à oração. A ermida tem alguma graça por fora e por dentro. O alpendre dá‑lhe elegância, do interior singelo destaco os silhares de azulejos de padrão enxaquetado. Mercê da desproporção existente entre a figura da Virgem e a de Cristo, esbocei um sorriso ao ver a pietà colocada no retábulo do altar‑mor.
Voltei ao centro de Tomar. Nem um monumento estaria aberto ao público, mas isso pouco me importava. A ardentia espalmava‑me e não tinha bossa para desentranhamentos e minúcias. Apreciei os paços do concelho, a ponte velha, as pinceladas de revivalismo manuelino na Casa Vieira Guimarães, fiz safra proveitosa na livraria alfarrabista Companhia dos Livros. Na confeitaria Estrelas de Tomar comprei a guloseima com esse nome, designativa de queijadas com miolo de amêndoa, e uma caixa do doce de ovos polvilhado com açúcar que dá fama à casa, o beija‑me depressa. Antes de descansar no hotel, ainda tive forças para ir à Ermida de São Lourenço, pequeno tesouro construído no local onde as tropas de D. João I e as de D. Nuno Álvares Pereira se encontraram quatro dias antes da Batalha de Aljubarrota.
Jantei n’O Tabuleiro. Comi arroz de pato e doce de amêndoa, passaram cum laude no teste do palato. Por ter insistido num tinto da terra, trouxeram‑me Casal das Freiras, pinga de que não gostei. Salvou‑se, porém, a jeropiga que me ofereceram no fim da refeição.
O empregado que me serviu recebia os clientes, e com eles lidava, fazendo uso de uma girândola de sufixos e empenhava‑se em incorporar «inho» e «inha» no património intangível de Portugal. Tomei nota de dois exemplos. A um casal de fregueses que acabara de chegar, perguntou: «Como vai esta maltinha linda?» Quando lhe perguntei como era o doce de amêndoa, logo me disse que ele levava «amendoazinha».
[1] QUITÉRIO, José, Bem comer & Curiosidades, 3.ª edição, Lisboa, Sistema Solar, CRL (DOCUMENTA), 2022, p. 483.
[2] MIGUÉIS, José Rodrigues, uma aventura inquietante, 3.ª edição, Lisboa, Editorial Estampa, 1981, p. 14.