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Fervor cívico e paixão pela política? Pareceu‑me burlesco: nos mictórios d’O Grémio, na Praça da República, mesmo a urinar, um homem assistia ao debate que decorrera no dia anterior, referente à primeira volta das eleições presidenciais brasileiras. Com uma mão segurava o pénis, com a outra estabilizava o telefone inteligente. Espetáculo bizarro, no início do meu dia em Elvas. Fui ver coisa mais interessante, a Igreja de Nossa Senhora da Assunção.
A igreja tem ares de castelo, de imóvel maciço. Na frontaria sobrepuja uma imponente torre sineira e as fachadas laterais são reforçadas por botaréus. Não faltam os coruchéus nem o remate de ameia e merlão. Quando construída, no século xvɪ, predominava o estilo manuelino, as reformas de que foi alvo trouxeram aditamentos barrocos e rococós. No espaço intestino, fixei o mármore policromo da capela‑mor, a cobertura em abóbada artesoada e o órgão do século xvɪɪɪ, de Pascoal Caetano Oldovini, sobre o guarda‑vento. Alguns turistas espanhóis comportavam‑se de maneira desrespeitosa, como se o templo lhes pertencesse.
A igreja teve gabarito de sé. Da época em que Elvas foi diocese, chega raconto de mesquinhez e sobranceria. Quando o bispo, D. Lourenço de Lencastre, se dirigia à sé, o deão, José Carlos de Lara, esperava‑o à beira de certa porta e aí lhe entregava o hissope. A partir de certo momento, deixou de o fazer. D. Lourenço moveu perseguição feroz a Lara e logrou que o cabido o obrigasse a manter a suprarreferida prática. O deão apelou para o metropolita de Évora, mas as suas pretensões não foram acolhidas. Com base na estória, António Dinis da Cruz e Silva — poeta e árcade que trabalhou, enquanto magistrado, em Elvas — escreveu em 1768 um poema satírico, O hissope, texto que denuncia a elasticidade moral do clero, hoje tão evidente (é ver o encobrimento da pedofilia no aprisco eclesiástico). Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris. Os que o esquecem são os que mais depressa disso se deveriam lembrar.
No castelo, submetido à autoridade da pedra e a gozar vistas soberbas, tomou‑me a necessidade de viático. O Lagar e o Adega Regional estavam lotados, só consegui lugar ao balcão d’A Coluna. Para celebrar o Alentejo, pedi Tiago Cabaço tinto, entrecosto de porco grelhado guarnecido por migas e sericaia com ameixa d’Elvas. Tudo correspondeu às expetativas que eu tinha.
Durante a refeição, ouvi alguém usar a palavra «paneleiro». Feriu‑me ouvidos e alma, há muito que a não escutava. Desgraçada homofobia que subsiste.
A simplicidade da frontaria da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco contrasta com a divícia ornamental do interior. A nave ostenta silhares de azulejos que exibem cenas da vida de São Francisco. A ousia, as capelas que a ladeiam e o arco cruzeiro são palco de um festival de talha dourada. Conversei com a vigia e acabei por lastimar a sua sorte de senhora demasiado grande para muitos espíritos daquela terra. Se bem a entendi, em Elvas a praga do patriarcado pesa muito, causa danos às mulheres e não está em vias de extinção.
A Igreja de Santa Maria de Alcáçova foi edificada no lugar onde existiu uma mesquita, talvez construída no século vɪɪɪ. Ainda se distingue o sítio em que esteve o mirabe. Aqui, os encantos moram na Capela da Conceição, do século xvɪɪ, toda revestida de talha dourada, e numa estatueta de pedra do século xv, proveniente da Capela dos Bencasados, que representa Nossa Senhora e o Menino.
É singular, a Igreja das Domínicas. Do século xvɪ, tem corpo octogonal cuja cúpula assenta em oito colunas de mármore com ornato policromo. Lá dentro, sente‑se desproporção: considerando a superfície, o corpo da igreja é excessivamente alto. No entanto, a conjugação das formas com o extenso revestimento azulejar outorga‑lhe caráter incomum e digno de apreciação. Também deve ser realçada a cobertura da cúpula do altar principal, em cinco gomos e decorada com adornos de estuque.
Em Elvas, ao invés do que sucede noutras localidades, é fácil visitar igrejas, o município contratou pessoas que garantem horários de abertura regulares. Em nome dos que apreciam o património religioso, um bem‑haja à autarquia local.
No fim da tarde, dei um longo passeio, durante o qual observei o Aqueduto da Amoreira, troços da fortificação abaluartada e outros vestígios da coisa militar — o Paiol de Nossa Senhora da Conceição e o Trem —, relevante na história da cidade. A luz, a temperatura amena, o estômago confortado pela cozinha alentejana, o elvense prestimoso, a satisfação de anseios de portugalidade, tudo isso me levou a pôr as vestes mais folgadas, as de sans‑souci.
A fortificação foi edificada no século xvɪɪ, já depois da restauração da independência (1640), e deve muito da sua eficácia ao saber de Cosmander, jesuíta holandês, matemático e conhecedor de arquitetura militar. O financiamento do aqueduto, construído nos séculos xvɪ e xvɪɪ, mostra que já então as autoridades eram imaginosas quando se tratava de obter receitas: foram buscar dinheiro à cobrança de um imposto, o real‑d’água, a empréstimos e à aplicação de coimas a quem faltasse à procissão do Corpo de Deus.
Fora difícil arranjar pouso para almoçar e, para dormir, não consegui sítio decente na cidade, tive de me hospedar numa quinta dos arrabaldes. É certo que Elvas tem muitos chamarizes, mas aí, como noutros albergues e casas de comes e bebes de Portugal, creio ter percebido consumos de vingança, subsequentes às privações impostas pela crise pandémica. De resto, eu tampouco achei imunizante que deles me defendesse.