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Escreveu José Régio que, em Portalegre, não abundavam filósofos, moralistas ou psicólogos. «Só abundava quem, por vacuidade interior e ausência de qualquer ocupação séria, continuamente vasculhasse na vida alheia.»[1] Não sei, depois da minha estada em Portalegre, se tais palavras mantêm atualidade. Mas afianço que Portalegre oferece cama, mesa e património virtuosos. Os recursos culturais ficam para outros textos, vamos à restauração e à hotelaria.
A principal sala de refeições do Tombalobos, em jeito de galeria subterrânea, denota conceção moderna. A cobertura é abobadada e as mesas têm tampo de azinho. O espaço fez parte do Convento de Santo Agostinho. Como especialidades do chefe, José Júlio Vintém, indicaram‑me: açorda de fraca no forno, peito de galo recheado com farinheira, gamo assado, borrego assado e barriga de porco assada guarnecida por migas que levavam farinheira.
Da primeira vez que almocei no restaurante, comi a açorda de fraca, disposta em três camadas. O estrato superior compunha‑se de fatias de pão tostado, o do meio compreendia a fraca desfiada e ensopada em escabeche, o de baixo levava fatias de pão humedecidas por esse molho. Segui o conselho do escanção e elegi Folha do Meio, de 2019, um tinto de cor rubi, macio, que bebi com prazer. Terminei o repasto com torrão real, doce que tem incunábulo no Convento de São Bernardo, em Portalegre.
De novo no Tombalobos, optei pelo gamo desossado e assado — com escolta de batatas, feijão‑verde, cebola, acelga e molho — e por encharcada. A pinga foi um Florão tinto, de 2018, que muito me agradou.
O atendimento é irrepreensível, a cozinha é primorosa, os ingredientes são escolhidos com apuro, tudo o que ali comi foi resultado de esmerada confeção.
Saí do Tombalobos, mas ele não sai de mim. Espero lá voltar e provar outras iguarias que vêm alçando a sua reputação, a saber, as pétalas de toucinho, a perdiz de escabeche, as vieiras com batata‑doce, as bochechas de bacalhau de poejada, o lombo de veado frito com alho e sal e a orelha de porco grelhada.
Perto do Tombalobos, fixei a atenção num cartaz da CDU em que se perguntava: «E se o teu salário desse para viver?» Gosto de Portugal, lastimo que grande parcela da sua massa trabalhadora não receba o suficiente para ter uma vida digna. A exploração da mão de obra naturalizou‑se e atingiu um grau que torna pertinente uma pergunta que deveria ser destituída de sentido. Não bastasse isso, ainda os lusos têm de enfrentar a especulação imobiliária, os retalhistas que recorrem à greedflation, os bancos que se embastecem com juros e comissões e não remuneram a poupança, e a inflação, que, no respeitante aos produtos alimentares, é superior à registada em países com os quais é legítimo estabelecer termos de comparação. Causa irritação, causa revolta. E quem vos escreve é insuspeito, nunca votou na CDU e considera‑se um social‑democrata de cepa, cujo voto vem oscilando entre PS e PSD.
A decoração do Solar do Forcado tem pendor rústico, nela sobeja o adorno que chama o universo tauromáquico. A casa foi fundada por Lourenço Mourato, antigo forcado, e é dirigida por Luís, seu filho. A ementa outorga favor aos pratos de touro bravo e àqueloutros de porco alentejano, mas também despertam o paladar a cabeça de xara, a cacholeira assada com carpaccio de abacaxi, os pastéis de alheira com mostarda de pimento picante (entradas) e, nas sobremesas, os doces de origem conventual: sericaia com ameixa d’Elvas, fartes de Portalegre e pão de rala.
A sopa de espinafres, a espetada de touro bravo e os fartes — doces de ovo, amêndoa e chila, envoltos em folha de hóstia — mostraram gabarito e correta regência dos tachos. O tinto da casa, de um produtor da serra de São Mamede, Miguel Malato, era frutado e tinha final longo, caiu‑me bem.
Sem ser manteigosa, a senhora que me atendeu na Taberna Casa Facha pôs doçura no servir. Pasci o paladar com dois ricos paparicos, galinha tostada em azeite, acolitada por batata frita e salada, e doce de vinagre, uma novidade para mim. O doce precisou de canela, só assim mantinha o equilíbrio de sabores. Na sala acanhada, jantavam também uma adolescente, a sua mãe e o marido desta. Nesse homem vi atuar a lei das compensações. Usou a expressão «cu à mostra», era básico e não alcançava alguns ditos da consorte. Mas denotava ser boa pessoa e com desvelo tratava a mulher e a enteada.
O café Alentejano foi concebido por Benvindo Ceia, pintor portalegrense, e abriu ao público em 1936. Conserva o essencial do mobiliário da época e um enorme alto‑relevo que representa a ceifa, nele se respira atmosfera retro. Aí provei a famosa boleima, típica da zona, feita com massa de pão, açúcar, canela e, naquele caso, enriquecida com maçã. Deliciosa. Ainda assim, em decorrência de me encontrar num lugar com pergaminhos de tradição, o deleite de espírito sobrepujou.
O Portalegre Palace é um hotel distinto. Situado num palacete que foi alvo de criteriosa reforma, alia o conforto ao bom gosto e à atmosfera de antanho. Os funcionários são competentes e atenciosos. Os gestores, Nelson e Beatriz, cultivam, de modo ático, a arte da proximidade entre o albergue e o hóspede. Aqui, não cabe apenas declarar o atendimento capaz, cumpre falar de serviço executado com brio. O brunch do Portalegre Palace ganhou fama, o pequeno‑almoço é uma montra de produtos locais: cacholeira cozida, paio, presunto, morcela, tibórnias com toucinho e tomate, queijos curados de cabra e ovelha, bolo finto e toucinho do céu. E tudo isto é mera amostra dos predicados da casa.
Nalguns estabelecimentos que referi, como noutros lugares de Portalegre e noutras paragens de Portugal, verifiquei que, na hora da despedida, pouca gente usa palavras e expressões como «adeus», «bom dia», «boa tarde» e «boa noite». Antes o irritante «boa continuação» ou o não menos desengraçado «chau». Todavia, como me dou com os tugas de Bruxelas e já conheço o hábito, nem sequer posso dizer que tenha ficado surpreendido.
[1] RÉGIO, José, Davam grandes passeios aos domingos, Braga, Opera Omnia, 2021, p. 20.