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Foi gastronómica, a minha primeira estação em Castelo Branco. O Cabra Preta tem ementa curta, mas prometedora. As entradas não surpreendem, as sugestões do dia valorizam a culinária regional e abrem o apetite: no dia em que lá fui, polvo com queijo da serra, prova de chouriço à contrabandista, vitela beirã, arroz de pato à antiga, bochechas de porco no caçolo e ensopado de javali. Quis eleger pitéu que levasse mão caraterística da casa e, por alvitre de quem me atendeu, pedi o último desses pratos. O suídeo, de carne tenra e rosada, veio com batata tostada no forno e com pão torrado. O molho que os embebia era suculento e não tinha nota de sabor nímio. Ao lado, as migas de pão e couve‑flor fizeram boa figura. A sobremesa foi delícia da Floripes, o doce da casa, ambrosíaco bolo húmido confecionado com ovo e farinha de amêndoa. Porquanto não havia pinga em garrafas de 375 mililitros, optei pelo tinto servido no copo — Conde Villar, um vinho regional alentejano com aroma de frutos vermelhos. Ainda me serviram o licor da casa, bebi‑o com agrado. Recomendo o Cabra Preta, a cozinha tem apuro local e os funcionários são corteses. Naquele dia de agosto, a clientela portuguesa mostrava‑se discreta e os espanhóis haviam perdido o salero durante a viagem.
Manuel Cargaleiro nasceu na Beira Baixa. Os albicastrenses obsequiaram‑no com um museu que, aquando da minha passagem, expunha, de sua lavra, pintura, desenho em barda e indiciário da mão do mestre, tapeçaria, azulejo e um par de objetos de cerâmica. Empresa de outrem, estavam à vista, inter alia, conjuntos de garrida cerâmica de Triana (Sevilha) e, com toda a propriedade, peças de faiança ratinha. Os «ratinhos» eram beirões que sazonalmente trabalhavam no Alentejo e o adjetivo serviu para qualificar a louça que consigo levavam, rija e apelativa.
No que tange à obra de Cargaleiro, ponho em evidência três óleos sobre madeira: pela cromia, Reflexos de Paris, de 2009; em virtude das formas e das cores, O Roberto, de 1990; mercê da estética e do aferro à região, Esta era a porta da vizinha que eu nunca conheci, de 2009, trabalho em que o artista usou a porta de um imóvel devoluto existente nas redondezas do local onde se encontra o museu, deu‑lhe adorno abundoso e nela inscreveu o nome das freguesias do concelho de Castelo Branco. Quanto a fazeduras de outros autores, saliento a presença da op art num acrílico sobre madeira de Victor Vasarely (Tsillag, de 1990) e a descoberta da cerâmica de Vietri sul Mare, exemplo de mistura da tradição com a contemporaneidade — encantou‑me o prato berrante de Salvatore Autuori.
O museu tem boas instalações e nada tenho a opor ao critério de seleção da obra exposta. Todavia, merece‑me um reparo: não há livro, brochura ou folheto, gratuito ou a preço razoável, que guie o visitante.
O frontispício da Igreja de São Miguel, catedral de Castelo Branco, tem aspeto maciço, sobeja em robustez o que falta em floreio. Ao invés, a fachada da sacristia ostenta portal avonde decorado e solta elegância. No interior, de uma só nave, enxerguei desacorde na ornamentação. Registei, porém, elementos credores de encómio: a talha dourada das capelas laterais; os púlpitos com vistoso guarda‑voz; os retábulos colaterais, de madeira pintada e marmoreados fingidos, em honra de Nossa Senhora de Fátima (do lado do Evangelho) e de Nossa Senhora (no flanco da Epístola); na capela‑mor, o órgão de tubos embutido na parede e o painel com a imagem do orago.
Cirandando pelo centro da cidade, vi uma população envelhecida. Deparei com gente afável, que ainda usa palavras como «vossemecê» e expressões como «vou procurar a» no sentido de «vou perguntar a». Enojou‑me o teor de um diálogo de campanário que, numa esplanada, ouvi de modo furtivo. Acabei convencido de que determinada escolha para a administração do Hospital Amato Lusitano obedecera ao resultado de lutas entre os grupelhos locais de um partido político. O bem‑estar dos pacientes é a última das preocupações destas criaturas.
A Igreja de Nossa Senhora de Fátima ostenta traço moderno que leva o circunstante a ver ali um barco em posição invertida. No arreio avultam os vitrais, em particular o que representa Nossa Senhora e os pequenos pastores de Fátima.
Defronte da igreja, há um liceu. Tão bem cuidado parecia, aproximei‑me do seu recinto. Depressa fiquei maldisposto. A frontaria exibe, numa inscrição em relevo na pedra, ditos sentenciosos de Salazar. Isso dá legitimação a quem não a merece, um ditador. Empregando linguagem hodierna: os tiranos devem ser cancelados. E o caso em pauta ganha peso acrescido, pois naquele estabelecimento ensina‑se História e é dada instrução a quem está a formar personalidade e a criar mundividências.
Jantei no Dona Ferreirinha. A ementa expõe rol extenso e esmerado de pratos, a carta de vinhos é magnífica. Como bandeiras da casa, vários pratos de bacalhau, tentáculo de polvo à lagareiro, arroz de lebre à malandrinho, lombo de porco frito com ananás, novilho encapelado em frutos silvestres e peito de pato rosado com molho doce. Por vontade de paladar regional, pedi maranhos com couves da horta. Apresentavam boa escolta — batatas fritas, legumes e laranja —, mas não me satisfizeram. Ora tinham gosto indistinto, ora sabiam a hortelã, um dos ingredientes dos maranhos. Depois comi farófias, acompanhadas por morangos. Na ausência de garrafas pequenas de vinho, quedei‑me por um copo do tinto da casa, o Alma D’Ouro, ácido para o meu gosto. É certo que não gostei dos maranhos, mas acho que o Dona Ferreirinha é um bom restaurante. Na academia, quando avaliava os conhecimentos dos alunos, por vezes percebia neles saberes que não desvelavam. No Dona Ferreirinha, acredito que me coube em sorte ilhota ruim num oceano de apreciável qualidade.