Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor!
Em Mangualde, as nossas boas andanças começaram no Palácio dos Condes de Anadia, edifício setecentista construído por iniciativa de Simão Paes do Amaral. Na respetiva fronte, com cinco panos pintados de rosa e delimitados por pilastras, inscreve‑se o portal, encimado por balcão, e correm duas filas de janelas. Adossada ao imóvel, está a capela.
No miolo do palácio, abundam os motivos de interesse. Sinalizo os painéis de azulejos que alindam diversos aposentos (abaixo falarei dos que decoram o Salão de Baile), o teto abobadado e bem alfaiado da Sala de Música, a coleção de biscoitos, provenientes da fábrica de porcelana de Capodimonte, e a escadaria de acesso ao andar nobre, numa magnífica composição que também integra o revestimento azulejar, algumas telas e o teto de masseira em cujo painel central domina o brasão da família Paes do Amaral. Em termos amplos, saliento todo o aparato do casarão.
A Manuel Silva, que trabalhou principalmente em Coimbra, é atribuída a pintura dos azulejos à vista no Salão de Baile. Eles patenteiam o mundo às avessas. No que toca à relação entre humanos e animais, figuram, por exemplo, cavalos que montam cavaleiros e um burro que conduz, porventura empurrando, um homem carregado com sacos. Noutro painel, a lua e o sol moram na parte inferior da composição, enquanto os elementos terrestres (edifícios) estão no céu, em riba das nuvens. No que tange a ordenamento social e familiar, assinalo a mulher armada e o homem com bebé ao colo. Visava‑se, por via das imagens, quebrar o gelo e espoletar conversas entre os circunstantes. Se há aqui sugestões avant la lettre, não sei.
A Igreja de São Julião transbordava de flamância, aí decorria um casamento interétnico. Eu não quis causar estorvo, já são suficientes os problemas que o casal terá de enfrentar pela vida afora. Consegui, ainda assim, divisar os dois retábulos de belo efeito que flanqueiam o arco cruzeiro, ambos de talha branca e dourada, e também o retábulo‑mor, avonde decorado, com colunas espiraladas de que partem arquivoltas. Mal pude parar no mundo dos vivos, detive‑me no universo dos mortos: examinei as sepulturas antropomórficas da necrópole medieval, escavadas em rocha no adro da igreja.
A Igreja da Misericórdia, de arquitetura barroca, foi igualmente edificada por ordem de Simão Paes do Amaral. Não a pude visitar, não consegui dar ala à estese diante do seu retábulo‑mor, deveras chamativo.
O complexo paroquial é um conjunto arquitetónico que fica a dever à beleza. Engloba uma igreja de traço moderno, tem serventias diversas para a alma e para o corpo. Aí, na confeitaria do Patronato, comi o famoso pastel de feijão, que correspondeu às expetativas. Leva açúcar, gemas, farinha e feijão moído e, pelo que sei, só ali o preparam segundo a receita original.
Na pastelaria, pus‑me a ouvir as conversas dos outros. Só escutei gente que metia a seitoura na vida alheia e com ela cortava na casaca de terceiros. O verbo convir recebia tratos de polé e uma avó pressagiava que o neto nunca lograria arranjar emprego decente. Macacos me mordam se me engano, mas creio que isso a alegrava, pois vincava a contraposição com as duas netas que gozavam do seu favor.
Arribámos ao monte onde está situado o Santuário de Nossa Senhora do Castelo. Erguida no século xɪx, a igreja denota marcado verticalismo. No espaço intestino, sobressaem os três retábulos de talha neoclássica, branca e dourada.
Na zona do santuário, há um café e um hotel, onde há muitos anos me alojei com os meus pais. As memórias mestas dessa estância desataram conversa com a Jūratė, na esplanada do café, refletimos sobre o conceito de família (que, além dos laços de parentesco, deveria abarcar a estima e o respeito). Recordei‑me da viagem, a caminho de enfadonha reunião de família, uma entre mil coisas que fiz a contragosto, só por causa da minha mãe, de quem tanto gostava e a quem tanto devo. Sofri com a sua morte, mas a verdade é que ela me libertou de Natais insuportáveis, de simpatias fingidas, de encontros com parentes que execro, seres que, se pudesse, varreria da minha biografia.
Nos últimos anos, cortei relações com várias pessoas do meu sangue, mormente com o meu pai. Sinto‑me melhor agora, sou mais feliz — é mesmo questão de saúde, física e mental. Lastimo não ter aplicado o cordão sanitário logo em 2011, aquando do decesso da genetriz.
Somos todos diferentes, é diverso o contexto em que nos movemos, não me arvoro em conselheiro de ninguém nem escrevo prosas destinadas a autoajuda. Porém, finco‑me nesta sentença, que ouso dirigir ao leitor: não permita que, a coberto de laços familiares, o desrespeitem e o tratem mal.