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Cheguei a Coja, no concelho de Arganil, ao início da tarde e almocei no Príncipe do Alva: oferece bom serviço e zela pela cozinha regional. Como emblemas da casa, indicaram‑me o pernil de cabrito com arroz de grelos e batata assada, a chanfana, o arroz de cabidela e o bucho, que foi a minha opção. Para o acompanhar, escolhi grelos salteados e migas. As notas de sabor foram francamente positivas. Porquanto é comum o bucho vir frio para a mesa, assim o pedi. No recheio, apreciei, em particular, o sangue, o arroz e a dosagem das especiarias. Visto que estava sozinho e não serviam vinho em garrafas pequenas, fiquei‑me pelo tinto da casa, de Vila Nova de Tazem. Pinga decente e equilibrada, com aroma de frutos vermelhos, dela não rezará a história. Um copo de jeropiga escoltou a sobremesa da época, um pudim de castanhas que se revelou o melhor pedaço do repasto.
Embora o dia estivesse pardo e sem luz que a colorisse, a ponte medieval próxima do restaurante compunha, em conjunto com o rio Alva, uma cena fotogénica, decorrente do reflexo dos seus três arcos de volta perfeita na água (no centro, formara‑se, inclusive, um círculo de belo efeito). A ponte ficou nos anais da história, pois, em 1811, um dos arcos foi cortado e isso impediu a passagem dos militares franceses.
Depois de um passeio rumo a jusante e de ver, na Capela do Senhor do Sepulcro, a imagem do Cristo jacente, internei‑me na vila.
Não pude entrar na Igreja Matriz, cujo orago é São Miguel, mas observei a sua frontaria elegante, à qual está adossada a torre sineira.
No largo central de Coja, fui à Boutique da Tuxa comprar produtos típicos da casa — broa de batata e broa de abóbora — e da região (tigelada). Fixei a vista no pelourinho, rematado por uma pinha com folhas, e numa casa do século xvɪɪɪ com brasão de família nobre esculpido na pedra e também reproduzido no guarda‑corpos de ferro forjado de uma varanda.
Em esplanada dessa praça, sentei‑me perto de três bolsonaristas de meia‑idade que chispavam (a segunda volta das eleições presidenciais brasileiras tivera lugar dois dias antes). Com educação e bons modos, interpelei‑os. Falei‑lhes do Brasil em retrocesso que percebi nos últimos anos, com um protagonista que transformou a política em exercício de boçalidade. Um homem que disseminou o ódio, promoveu o classismo e o extrativismo, desrespeitou a ciência, o meio ambiente, os direitos das minorias, a democracia e o Estado de direito. Outrossim, aduzi os motivos que me levam a ver motivações políticas no processo judicial que conduziu à prisão de Lula.
Os meus interlocutores ergueram a voz e responderam‑me, mas não desmontaram nenhum dos meus argumentos e só conseguiram dizer que nunca votariam num bandido, num ex‑presidiário. Eles não eram chalupas e acredito que estivessem bem‑intencionados, mas, durante a conversa, senti que não lidava com gente do século xxɪ. Se mesmo estas pessoas vivem fora da civilização, como será o exército de fanáticos que apoia Bolsonaro? O futuro do Brasil inquieta‑me, mormente por saber que Lula terá de governar em contexto político adverso e em tempo de vacas magras. Note‑se que não nutro particular simpatia pelo Partido dos Trabalhadores brasileiro e que, no seu seio, o político de que me sinto mais próximo é Fernando Haddad.
Cabe acrescentar que Fernando Vale, antifascista e João Semana que eu admirava, exerceu medicina em Coja. Também em honra da sua memória, senti necessidade de pugnar pelos valores democráticos, de dizer ao trio de brasileiros aquilo que penso.
Do pavilhão gimnodesportivo, vinham música e babaré. Ali se comemorava o aniversário da Associação Filarmónica «Progresso Pátria Nova de Coja». Quando lá entrei, os circunstantes ouviam a arenga e a voz vibrátil de um cavalheiro idoso, que arrebatava a audiência graças a racontos acerca da sua vida árdua e a louvares ao trabalho e ao sacrifício. Tudo isso merece o meu respeito, mas eu estimo sociedades motivadas pela satisfação e pelo bem‑estar. O dito senhor nasceu no negrume do Estado Novo, mas hoje os tempos são diversos e eu gostaria que, discursando, um neto dele pusesse a tónica no regozijo e nos distintos caminhos que a este podem levar.
Voltei a Coja poucos dias depois. Almocei outra vez no Príncipe do Alva e não me arrependi. Serviço sem mácula e repasto de alto nível, do prato principal — chambão de borrego com puré de batata, grelos salteados, um ramito de alecrim e molho da assadura — à sobremesa, um pudim de queijo com sabor ligeiro.
Ainda no âmbito das celebrações do seu aniversário, a susodita filarmónica acolhia em Coja a Sociedade Filarmónica Tondelense e a Banda Filarmónica de Vila Nova de Tazem. Entre os músicos, descortinei criaturas que transbordavam de brio, rapazes enfastiados e raparigas com faces rosadas e inquestionável viço aldeão. As três bandas deram um bom espetáculo, mescla de música e de genuína portugalidade.
Fã de arqueologia industrial, vi o que resta das instalações da Empresa de Cerâmica da Carriça. Afora outras peças, aí foram produzidos, recorrendo à máquina, púcaros para recolher resina. No início, oleiros faziam‑nos de jeito artesanal, com os consequentes limites em termos de quantidade e de qualidade. Conquanto satisfeito com as fotos que o lugar me proporcionou, pensei no ror de famílias que a fábrica alimentou e no formigar de operários em idos bons para o negócio e deixei Coja tocado pela nostalgia.