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Na cidade de Santarém, almocei duas vezes, jantei uma vez. E é caso para dizer que me saiu a sorte grande, tão bem comi e tal a cortesia com que me atenderam.
A Taberna do Quinzena II é sucursal de um conhecido estaminé escalabitano. Nos adornos sobreabundam referências ao universo tauromáquico, vi fotografias e cartazes que presentificavam personagens há décadas ausentes do meu viver, por exemplo, Mestre Baptista e Ricardo Chibanga. Enquanto comia, perguntei‑me se a minha ida ao Ribatejo e a um sítio como o restaurante em pauta poderia lenificar o que penso acerca das corridas de touros. Mas não. Respeito paixões e tradições, compreendo entusiasmos locais com a festa brava. Porém, a tourada representa deleite que pressupõe a dor de animal senciente e isso repugna‑me, desde logo em termos civilizacionais. Não será amanhã nem no curto prazo, mas acredito que, em virtude da corrente reordenação de valores e graças aos jovens, que redobram zelos com o bem‑estar dos animais, a tourada terá fim. Oxalá o caminho se faça sem fanatismos e sem seguir à letra o que sugerem partidos de nicho, autores de propostas e fautores de atos destituídos de bom senso.
Certa a disputa em torno das corridas de touros, ela não se estenderá à qualidade dos repastos servidos na Taberna do Quinzena II. Decerto são objeto de alargado elogio. Falha de pitéus dignos de espanto, a ementa apresenta listas razoáveis de entradas e de saladas, de grelhados de carne e de sobremesas, e um rol mais curto de grelhados de peixe. Como pratos do dia, a ardósia anunciava bacalhau com magusto e picadinho de novilho bravo. Optei pelo primeiro, que é típico de Santarém e honrou a cidade. Duas postas do fiel‑amigo, devidamente ensopadas em molho de azeite e alho, e porção generosa do magusto ribatejano, uma espécie de açorda que recorda as migas e combina pão e broa de milho com feijão branco, azeite e alho. Tudo estava delicioso e sem precisar de correção. Pedi também tarte com mel e noz. Fresca, húmida quanto baste, devorei‑a com prazer.
Saí satisfeito com a mesa de caráter e marcado pelo sinal telúrico e popular que em mim haviam deixado a manja, a louça de barro, os empregados, a freguesia terra a terra, o ambiente e os ornatos. Moro longe e apreciei o cunho de Portugal, o selo do Ribatejo.
Uma amiga de Santarém que reside em Bruxelas, senhora de palato apurado (e dona da mais bonita coleção de chapéus que conheço), recomendou‑me a Ó balcão, aí fui jantar. A taberna, na qual acaba por prevalecer o gosto pelo moderno, presta tributo aos produtos ribatejanos, mormente àqueles que o tempo fez cair no olvido. O menu não é extenso, inclui singularidades, patenteia esmero e seleção. Respiguei a barriga de carpa e o lombo de carpa, a sopa de peixe do rio com ovas de barbo, a falsa cabidela de cevada e enguia fumada, o arroz de lingueirão e o gratinado de rabo de touro. Ataquei o arroz de lingueirão e o pudim de abafado, nada lhes tenho a apontar em termos de sabor, tempero ou apresentação. A silharia de azulejos, os tampos de mármore nas mesas e o verde que as luzes desvelavam convergiam em decoração de bom gosto.
Continuando de faca e garfo: almocei no Dois Petiscos, restaurante de traço contemporâneo e minimalista. Nos fornos manda o chefe João Correia, que laborou em cozinhas de Barcelona e agora alia a culinária tradicional e o produto ribatejano ao timbre catalão e mediterrânico. A lista surpreende em virtude da diversidade de petiscos, por exemplo, croquetes de novilho com molho de caril e mel, sanduíches de rabo de touro com aïoli e cebolinho, línguas de bacalhau panadas com aïoli de limão, peixinhos da horta, prego de atum, servido em bolo do caco com mostarda antiga, e vaso de ovos com espargos frescos e cebola crocante. Do rol de pratos principais constavam, entre outros, bacalhau ao quadrado, cozinhado no forno com broa, espinafres e farinheira, magret de pato com laranja marinada e terrina de leitão com ervilha‑torta, laranja e puré de batata‑doce. Não me entreguei a aventuras e quedei‑me pelo gadídeo, irrepreensível e sem pormenor a assinalar.
De uma parede do restaurante, pende cabeça de touro esculpida. Mostrar tal artefacto no Dois Petiscos, onde só vi trabalhar gente nova, em vez de uma cabeça de touro embalsamada, como avém na Taberna do Quinzena II, é indiciador de sã evolução das mentalidades.
Acompanhada pela família, refeiçoava uma senhora linda. Usava pingente seleto e tanto a sua blusa, azul‑turquesa, como o seu casaco, de tom ambarino, tinham bom corte. Cabia falar de pessoa bem vestida. Acontece que, com um verniz que refulgia, pintara as unhas de laranja muito vivo. O efeito era supino, quem para ela olhasse acabaria por se focar nas unhas. Um desperdício.
Na pastelaria Bijou, comprei celestes de Santa Clara, arrepiados de Almoster e pampilhos. Se bem percebi, os celestes e os arrepiados são emblemas da gastronomia escalabitana, e os pampilhos distinguem a referida confeitaria. Os primeiros tiveram origem na mão das clarissas do convento de Santa Clara e levam ovo, amêndoa, açúcar e obreia, os segundos fazem‑se com ovo, miolo de amêndoa, canela e açúcar. Os pampilhos, recheados com creme de ovos, foram buscar nome à vara comprida empregue pelos campinos para conduzir o gado, e a sua massa contém farinha, açúcar, ovos e manteiga. Não morri de amores pelos doces em questão, mas nenhum deles manchou o nome de Santarém.