Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor!
Com a Jūratė, fiz uma viagem de inverno a Tromsø, cidade norueguesa que se encontra a norte do Círculo Polar Ártico, a Spitsbergen, ilha do arquipélago de Svalbard, e a Oslo.
Voámos de Bruxelas para Tromsø. Fizemos escala no aeroporto de Oslo, onde apreciei o uso da madeira e o bom gosto, que parecia dulcificar os passageiros.
Tromsø é hoje um polo universitário de relevo. As denominações que recebeu — Porta do Ártico e, em período anterior, Paris do Norte — dizem muito acerca da sua história: ponto de partida para expedições polares e terra que se tornou cosmopolita graças a um porto aberto ao mercadejo internacional.
O desejo de ver auroras boreais foi o motivo precípuo que nos trouxe a esta latitude. Não vimos nenhuma. Abaixo se perceberá que as minhas melhores memórias de Tromsø radicam na arquitetura. Embora haja lá bons museus, deixámo‑los de parte. Pesavam‑nos o cansaço e o stresse e, em consonância com uma certa ideia que tínhamos dos países escandinavos, decidimo‑nos por passeios ao ar livre e, como ouço na Bélgica, por prendre un grand bol d’air pur. Em matéria de gastronomia, o meu paladar recorda‑se do hambúrguer de rena e do bacalhau com batatas e bacon que comemos no restaurante Skirri. E também das pizas da Casa Inferno — gostaríamos de ser mais devotados às culinárias locais, mas por norma seguimos a nossa gana, mesmo que esta delas nos afaste.
O centro histórico do burgo é uma mostra de neoclassicismo. Pormenor curioso, mas natural na Noruega: as casas construídas segundo os cânones desse movimento são feitas de madeira. Os comerciantes que ordenaram a respetiva edificação e que pertenciam a famílias de mercadores de Bergen e de Trondheim reproduziram em Tromsø o tipo da terra natal: os de Bergen optaram pela disposição horizontal das tábuas e por duas portas, uma em cada extremo da fachada; os de Trondheim escolheram o arrumo vertical do tabuado e uma só porta (no meio da frontaria). No que toca à cor das moradias, a classe possidente pintava‑as de branco ou de amarelo e os desfavorecidos lançavam mão do vermelho, cor mais barata. As casas de madeira atraem‑me, trazem‑me sempre o gosto do que é invulgar. Já a Jūratė cresceu a vê‑las na Lituânia e, se bem que as aprecie, não goza o feitiço da coisa nova.
As casas do núcleo histórico valem pelo conjunto que formam. Individualizando, sobressaem a catedral, o edifício futurista onde funciona o centro Polaria, a igreja de Tromsdalen (conhecida por «catedral do Ártico») e, em particular quando luz no escuro, a biblioteca.
A catedral, uma das maiores igrejas de madeira da Noruega, é um templo neogótico em cujo exterior ressalta a associação de amarelo e cinzento. Data de 1861, pertence à confissão luterana, nela reina uma torre altaneira. Quis o acaso que aí encontrássemos um sacerdote, simpático e descontraído, que nos guiou na visita e, sem ponta de proselitismo, nos falou do credo luterano.
O edifício de Polaria, de 1998, compõe‑se de cinco grandes blocos de betão e dum outro revestido de madeira que parecem cair como peças de dominó. Os primeiros, de cor branca, representam massas de gelo que os mares do Ártico depositaram em terra.
A catedral do Ártico, de 1965, impressiona mercê da figura que lhe dão 11 triângulos de betão coberto de alumínio. Separados por vidro, a sua altura diminui até ao oitavo triângulo, inclusive, e volta a aumentar nos três últimos, sem atingir a do inicial, o da frontaria. Jogando com linhas retas, Jan Inge Hovig, o arquiteto que ideou a igreja, criou um arremedo de curva e, é cabível afirmá‑lo, uma sensação de movimento. A estese é reforçada pela abundância de vidro na frontaria e pelo vitral, alusivo à ressurreição de Jesus Cristo, que constitui o tardoz.
A biblioteca, de 2005, tem fachadas de vidro e cobertura que desenha um paraboloide hiperbólico. Erguida no sítio onde funcionou um cinema, dele herdou o soberbo telhado, que exprime influência das estruturas conquiformes do arquiteto Félix Candela.
Os parágrafos anteriores mostram que gostei de ir a Tromsø. O Scandic Ishavshotel contribuiu para isso. O albergue servia um pequeno‑almoço capaz de satisfazer o hóspede mais exigente e o nosso quarto, confortável e com vista própria de estampa, permitiu que sentíssemos hygge. Através da janela víamos montanhas, casas e esteiras de luz (que o sol depunha na água) pelas quais navegavam os barcos. Quando fiz a reserva, sabia que um aposento assim reverdece a vida íntima de um casal.
A cais próximo do hotel atracava a embarcação da frota Hurtigruten, ex‑líbris da Noruega. Criada no século xɪx a fim de suprir a falta de conexões rodoviárias e ferroviárias no Norte do país, os seus barcos ligam, com mais de trinta escalas, Bergen, no Sul, a Kirkenes, perto do extremo setentrional e da fronteira com a Rússia. Ab ovo vocacionada para o transporte e para o aprovisionamento, a Hurtigruten ganhou também prestança turística. Observei os passageiros e lobriguei grupos de pensionistas alemães, criaturas miúdas em visita de família, teenagers solícitos que se tornarão cidadãos exemplares e casais a viver diferentes febres de amor.
Alugámos um carro e jornadeámos nas ilhas de Kvaløya e Sommarøy. Dos sítios que visitei na Noruega, Kvaløya é o que melhor corresponde ao país que, antes da viagem, achava na geografia do meu imaginário: montanhas, fiordes, neve, ar puro e fresco, baixa densidade populacional, casas coloridas e cabanas de pescador construídas sobre palafitas.
Uma ponte bonita liga Kvaløya a Sommarøy. Aqui, na aldeia homónima, vários mundos: as águas que banham a povoação exibiam azul‑turquesa caribenho; no restaurante, o Havfrua Kro, só serviam fast food e os outros fregueses eram trabalhadores braçais polacos. Ainda assim, uma sensação de fim do mundo, que decorria do caráter remoto do lugar e de não vermos ninguém nas ruas. Certo é que, associada à longinquidade física, a distância de espírito que ali se interpôs entre nós e o resto dos humanos fez‑me sentir bem, genuinamente feliz.