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Exteriores e interiores da Villa Empain denunciam um dos mais bonitos conjuntos art déco de Bruxelas. Nesse imóvel com volumetria harmoniosa, o recuo de partes das fachadas de granito polido de Baveno põe em evidência as formas geométricas. Linhas de luzidio metal auricolor debruam janelas, portadas e alguns corpos do edifício. O interior da casa vinca o cunho da monumentalidade. Os materiais são nobres (mármores belíssimos, mogno, pau‑santo, nogueira…) e de novo se topa o talhe estilizado geometricamente, basta ver a ferragem. Nas traseiras, as salas de cerimónia abrem para um lajedo e para a zona da piscina em forma de sino.
O raconto da ocupação do edifício ao longo do tempo revela um pouco da história de Bruxelas. Por querer do barão Louis Empain e traço do arquiteto Michel Polak, foi construído nos anos trinta do século xx. Mecenas e proprietário de outros imóveis, Empain doou‑o ao Estado belga, em 1937, para que aí fosse aberto um museu de artes decorativas. Objeto de requisição em novembro de 1943, as autoridades alemãs dele tomaram posse. Após a Segunda Guerra Mundial, mediante ato desrespeitador do contrato de doação de 1937, o imóvel foi arrendado aos soviéticos, que aí abriram a sua embaixada. Porém, pacta sunt servanda e esse ato não agradou a Louis Empain, que reouve o edifício nos anos sessenta e nas suas salas organizou exposições de arte cinética e de op art. Em 1973, um homem de negócios adquiriu‑o e mais tarde locou‑o à RTL, que nele se manteve até ao início dos anos noventa. Depois, a casa foi cedida para eventos, alienada e ficou exposta ao vandalismo e ao estrago. A fundação Boghossian comprou‑a em 2006, devolveu‑lhe pompas de antanho e converteu‑a num polo de arte e de diálogo entre as culturas do Ocidente e do Oriente.
Nos espaços museais amiúde seleciono o que pretendo ver. Em lapsos de minutos, ou mesmo de horas, tenho dificuldade em assimilar grandes doses de informação relativa a obras de arte. A caminho da Villa Empain, pretendia focar‑me nos esplendores art déco e desse jeito dirigir a visita da Jūratė. Assim foi no início da volta: concentrámo‑nos naquilo que dá cachê ao edifício, no requinte dos materiais, no belo vitral de Max Ingrand que, segundo aviso dos doutos, representa a Via Láctea. Mas não tardou que prestássemos atenção aos trabalhos expostos no âmbito de Icons, mostra sobre a qual nada tinha procurado saber.
A obra que espoletou o nosso interesse por Icons foi St. Stephanus, de Wim Delvoye, uma baliza inverosímil, com dimensões que a aproximam daqueloutras próprias do futsal e do andebol. Delvoye pintou a trave e os postes de vermelho e branco, e substituiu a rede por vitrais. No que atrás fecha a baliza, traçou arcos ogivais e figurou Santo Estêvão. Embora saiba que a arte é o reino da dissonância e da combinação improvável, senti surpresa.
Delvoye é belga, polifacetado e provocador (já tatuou porcos e expô‑los tatuados). Na Villa Empain, vimos uma série de ícones que justamente denotam vezo para o desplante: com metal bem trabalhado, cobriu parte das imagens que foi buscar a um clipe viral e que havia impresso em madeira de bétula. Nalgumas há mulheres despidas, um nu vulgar. Se considerarmos que existe aqui uma referência religiosa — ela residirá apenas no formato e na designação da obra como ícone —, podemos dizer que Delvoye mesclou o universo sacro com a cultura popular e com o machismo. Cumpre assinalar que o susodito clipe ilustra a canção Blurred Lines, passível de crítica por sexismo.
Deng Xiaoping (1904–1997), óleo sobre tela de grandes dimensões, é uma homenagem de Yan Pei‑Ming ao maioral que, para muitos chineses, simboliza as reformas, o acesso à universidade, a chance de estudar no estrangeiro e de criar um negócio. Yan Pei‑Ming julga‑se devedor de Deng Xiaoping, graças a ele pôde formar‑se na França e quis através do pincel prestar‑lhe tributo.
Durante a veneração, o crente ortodoxo toca nos ícones. Sarkis, artista francês de origem arménia, transpô‑lo para o domínio artístico. No Palazzo Grassi, em Veneza, viu um apito asteca de terracota que, no seu parecer, simbolizava um anjo guerreiro. Por meio de aguarela, reproduziu os traços do assobio, acrescentou‑lhes duas asas e nestas depôs as suas impressões digitais. Assim nasceu L’ange guerrier, quadro protegido por uma placa de plexiglas — alvo de limpeza regular — na qual os visitantes podiam, com tinta, deixar os seus datilogramas. Todavia, criaturas incivis várias vezes os estamparam fora dessa placa (na parede, por exemplo) e os organizadores de Icons proibiram os toques. Para Sarkis, o que faz o ícone não é a obra, é o olhar a ela dirigido. Sem o saber, quem se comportou de modo inurbano foi, pois, iconoclasta.
Em Présumé innocent, de Mounir Fatmi, cabos coaxiais cravados numa prancha de madeira compõem um perfil da cabeça de Cristo (com a coroa de espinhos). Os cabos, mercê do papel que têm ou tiveram na obsidiante sociedade da informação, logo nos transplantam para a era moderna. E o título atrai o travor do nosso tempo, das redes sociais, dos blogues e dos meios de comunicação social que optaram pela presunção da culpa e exaltam justiceiros e populistas como ídolos dos dias que correm.
Duane Hanson foi um escultor norte‑americano, mestre do hiper‑realismo, da figuração do sujeito banal e da arraia‑miúda. O seu Window Washer, de 1984, parecia um humano que estava ali, na Villa Empain, em agosto de 2021. Trouxe‑o de lá como ícone do presente, nele leio precariedade e condições laborais leoninas.
Na arte que não desejo ter em casa posso apreciar o kitsch. Numa tela, Pierre e Gilles (fotógrafo e pintor, respetivamente) imprimiram a fotografia de Stromae e pintaram‑na com rosas e outros motivos, dessa forma criando For Ever (Paul Stromae), um quadro rico de cor. A imagem do artista ficou dentro de uma mandorla, à guisa de Cristo. Os seus olhos vertem lágrimas. Ele segura um coração de rosas e traja uma camisa garrida em que se destacam flores, o nome e retratos de Cesária Évora. Eis um conjunto camp, chamativo, que concorre para forjar o estatuto de ícone de Stromae.
Perlustrámos outras obras, em especial ícones tradicionais que são objeto de culto nas igrejas cristãs orientais, mas as peças referidas deixaram‑me a mais viva lembrança. Surpreendeu‑me a polimorfia dos trabalhos expostos, a dessacralização do ícone, e foi‑me particularmente grata a mescla do sagrado e do profano no trabalho de Wim Delvoye e em Présumé innocent.
Na Villa Empain, ainda visitámos Trees for Memories, exposição a que também cheguei in albis. Pensada para comemorar o centenário do fim da Primeira Guerra Mundial, esteve patente ao público em Berlim entre novembro de 2018 e janeiro de 2019. Os organizadores da mostra convidaram 31 artistas — oriundos, em particular, de Estados signatários do Tratado de Versalhes e de Estados que participaram na Conferência de Paz de Paris — a produzir feitura alusiva à paz. Todos receberam um cubo de madeira de carvalho da Alsácia que exibia marcas do conflito (fendas, superfícies tisnadas, fragmentos de projéteis) e com ele deram largas ao seu engenho.
Gostei das obras que têm registo minimalista, por exemplo, Ares, de Pedro Cabrita Reis, e o trabalho, sem título, do austríaco Hermann Nitsch, convertido em ponto de flagelo e morte graças a um arremedo de sangue no cimo e nos lados do cubo. Distingo Double World, do arménio Jean Boghossian. Usando laser, ele fez um corte no bloco de madeira e dividiu‑o em duas partes. O talhe dentado resultante da operação transmite agressividade a esses dois corpos, parece dispor cada um deles a luta com o outro. Mas o certo é que a incisão apurada também permite juntá‑los. É razoável dizer que a obra pode representar paz, guerra ou tensão. E Boghossian afirmou‑o.
Quando saímos da Villa Empain, tínhamos o espírito cheio de impressões felizes e enriquecedoras.