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Na manhã do segundo dia que passei em Santarém, debalde tentei entrar na Igreja da Misericórdia, espécime de igreja‑salão. A pessoa que abria as respetivas portas aposentara‑se e ainda não havia sido substituída. Na Igreja do Hospital de Jesus Cristo, voltei a bater com o nariz na porta. Quanto à Igreja de São João de Alporão, sabia‑a temporariamente encerrada, nem sequer lá fui. A reio visitei outras três casas de Deus.
Na Igreja de Santa Maria de Marvila, a fronte é rasgada por portal manuelino de arcos policêntricos trilobados, coroado por troncos e cogulhos radiantes. Flanqueiam‑no dois pilares, também cogulhados. No interior, que estadeia imenso forro azulejar seiscentista, de alguma sorte me senti sujeito a uma imersão, lustral e conquistadora, em azulejo. Pouco tento me sobrou para observar tudo o mais que o templo oferece, nada tenho para contar.
Segui para a Igreja de Santo Estevão. A sua fachada não é digna de canto, o punctum saliens é o interior renascentista. Fixei‑me nos três arcos de pedra, decorados com tondi, que separam o transepto das três naves. Entre eles, erguem‑se pilares com as imagens de São Pedro e de São Paulo, colocadas em mísulas e resguardadas por dosseletes. Baixos‑relevos que representam os quatro evangelistas adornam a base dos pilares.
A Igreja de Santo Estevão é o santuário do Santíssimo Milagre de Santarém. O extraordinário sucesso ocorreu no século xɪɪɪ. Destratada pelo marido, uma paroquiana local pediu ajuda a uma bruxa. Esta prometeu‑lhe remédio, mas fez notar que precisaria de uma hóstia consagrada. Na Igreja de Santo Estevão, a mal‑andante foi comungar, mas à capucha pegou na hóstia, guardou‑a e dirigiu‑se para casa da maga. No caminho, saiu sangue do véu que emantilhava a hóstia, a mulher correu para casa e guardou‑a numa arca. De noite, da arca veio luz intensa, que iluminou a casa e levou a infeliz a dar notícia do que acontecera ao marido. Informado o pároco, a notícia espalhou‑se, o caso suscitou admiração e gerou devoção. A hóstia está guardada numa custódia que se encontra no sacrário da igreja. Nas naves laterais, quatro telas de André de Morales, datadas de 1646, evocam o milagre.
Depois da missa a que nela assisti, lesmei na Igreja de Nossa Senhora da Conceição do Colégio dos Jesuítas, no entretempo elevada a sé. Em contraponto a chã frontaria maneirista, o interior encerra divícia barroca, a mais importante do género em Santarém.
Um fresco de assinaláveis dimensões, que gera a ideia de obra arquitetónica (arquitetura fingida), preenche o teto. A composição — que inclui a padroeira rodeada de anjos, cenas do Antigo Testamento e representações alegóricas de quatro partes do mundo — leva festões floridos, tímpanos e consolas que justamente criam a ilusão de estarmos perante trabalho de arquitetura.
A capela‑mor regala os olhos: colunas torsas, lavores de talha dourada, retábulo com embutidos de pedraria policroma, abóbada de cobertura embelezada com um fresco. No que respeita às capelas laterais, ficaram‑me na memória a devotada a Nossa Senhora da Boa Morte e também a Capela de Nossa Senhora da Glória. A primeira integra um retábulo policromo, de mármore italiano, enfeitado com um baixo‑relevo que figura a Assunção; vê‑se igualmente um túmulo com escultura que representa a Dormição. A segunda ostenta um retábulo de talha dourada em cujo tímpano está esculpida cena com os 24 anciãos do Apocalipse.
Em Santarém, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição do Colégio dos Jesuítas foi o monumento religioso onde mais afemencei a vista, pelos materiais usados e mercê da cenografia do ornato. No entanto, por feitiço resultante do revestimento azulejar, é à Igreja de Santa Maria de Marvila que outorgo predileção.
Empós almoço que me avigorou, no Dois Petiscos, visitei o Museu Diocesano. O respetivo bilhete de acesso permite entrar na catedral, a ela voltei pelo prazer da apreensão a sós. No museu, vi um mar de tesouros de arte sacra, deixo registo acerca de um deles, a escultura barroca, de madeira policromada, que representa Santa Ana a ensinar a Virgem Maria. Do século xvɪɪɪ, desconhece‑se o seu autor. Santa Ana está sentada numa cadeira; a Virgem está de pé à sua esquerda, o observador vê‑a de perfil. A expressão de movimento tocou‑me, advém do dedo indicador de Maria a apontar para o texto, do pender da cabeça de Santa Ana e ainda do jeito como esta, com o braço esquerdo, envolve a Virgem.
Porque o Convento de São Francisco estava fechado e não era possível, naquele comenos — nem noutro que me conviesse —, visitar a Igreja de Santa Clara, optei por uma caminhada no decorrer da qual observei a azulejaria do mercado municipal (apesar dos tapumes que resguardavam as obras de renovação), o palácio da justiça e o bem conservado imóvel onde funciona a Sala de Leitura Bernardo Santareno.
Já motorizado, bati para o Chafariz das Figueiras, um dos alçadores da capital do Gótico. Adossado a um troço de muralha, é, na realidade, um alpendre com três arcos ogivais que protege a bica. Toucado por merlões piramidais, dá ares de fortim. Creio não serem de ordem cultural as motivações da maior parte das pessoas que ali vão. Senti que involuntariamente quebrei os entusiasmos de um casal que estava dentro de um carro. Mais tarde, vi no chão um preservativo usado e uma garrafa de bebida espirituosa.
Saí de Santarém, duas perguntas vieram no meu encalço. Não há na cidade arquitetura contemporânea que mereça gabo? Ou ela existe e eu não fui capaz de a descobrir?