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“A espuma dos dias” é uma expressão utilizada normalmente para descrever algo que se perde por falta de substância, que se erode na rotina - como o tempo que nunca sabemos para onde vai. Quando olhamos para trás, nem sabemos bem como se esgotaram dias, semanas, meses e (para os menos introspectivos) às vezes anos.
A expressão tem um teor muito gráfico, quase sufocante pelo sentimento de impotência que causa. Aceitei que tal como a espuma do mar - no seu vaivém perpétuo - também a rotina nos traria esse efeito de erosão gradual e sorrateira. No entanto, novas camadas têm surgido sobre esta espuma, adicionam opacidade e grossura, tornam o vaivém mais erosivo.
Já correram rios de tinta sobre estas camadas. Uma artilharia intensa: redes sociais com conteúdo contínuo, smart TV’s com 4 ou 5 serviços de streaming acessíveis diretamente do comando, notícias online com actualizações ao minuto - podia continuar. Exemplos não faltam: a fila do banco onde tradicionalmente abunda a monotonia, agora preenchida pelo infinito deslizar de ecrãs; o ligar instantâneo da televisão quando se chega a casa ou até as idas ao WC prolongadas no tempo porque se leva o telemóvel.
Estas novas camadas despem os nossos dias do aborrecimento normal ao qual o cérebro humano se habituou durante toda a sua existência. O mesmo aborrecimento que transforma o tédio em criação, em ideias, em nervosismo sobre problemas sobre os quais só se pode refletir profundamente se estivermos aborrecidos.
A falta de tédio afasta-nos para longe de reflexões filosóficas sobre os nossos propósitos ou mesmo sobre o dia-a-dia, a mente actual não tem banda larga para vazios longos. Mas é nesses propósitos que assenta a vontade humana. Se não refletirmos sobre eles, se não planearmos as nossas várias facetas, se não almejarmos a algo que nos ultrapassa, a vida torna-se um infidável ciclo de preparação de tupperwares, cama e trabalho.
É minha crença de que todo o Homem tem várias facetas: desde a criativa, intelectual à física ou até espiritual. Abomino a ideia de uma separação rígida destas facetas em “sectores” da sociedade: os criativos só podem ser os artistas, a excelente forma física está reservada aos atletas e aos intelectuais cabe tudo o que é “inteligente” - desde a ciência e literatura ao governo de nações. Torna-se fácil então entregarmo-nos a uma faceta e deixar as outras duas para outros que se encaixarão melhor nelas.
Esta compartimentalização tornou-se para mim ainda mais alarmante quando encontrei as ideias do filósofo português Steven Gouveia sobre a moralidade da abstenção - este defende que a abstenção não só não é errada como se torna um dever para quem chega à conclusão que não está devidamente informado para votar. Não tendo nada especialmente contra esta teoria, para mim tornou-se óbvio como esta ideia podia servir perfeitamente quem já se serve desta “divisão”.
A postura do “eu é que sei” porque já “ando nisto há muito tempo” é mais do que comum no típico político português. Não vale a pena falar muito sobre esta ou outra decisão - “é díficil de explicar”, “é complexo”, “tem diversas implicações”. Esta atitude, combinada com a equivalente “não me meto na política, não percebo nada disso” do outro lado da equação, entrega de bandeja a liderança do país a “quem percebe disto”, a políticos de carreira e outros iluminados.
Ao descurar lados diferentes da individualidade, acabamos por perder grande parte do potencial que comportamos já que esses aspectos complementam-se. Caímos no erro de acharmos moralmente correta a nossa abstenção na vida política e cívica delegando essas funções a quem se auto-denominou capaz delas.
Se com a espuma dos dias essas facetas já são esquecidas, com a lama são engolidas. A solução não passa por aceitar essa especialização, nem por disparar em todas as direções da existência. A solução passa muito por voltarmos a ser mais generalistas, por cultivarmos as nossas facetas. Afinal, alguém um dia disse que “a especialização é para insetos”.