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É daqueles defeitos que algum provincianismo nos traz: dentro do rol de parvoíces únicas que achamos possuir enquanto povo, o não-resistir à mórbida curiosidade de olhar para um acidente era algo que subconscientemente estava registado como muito português até começar a conduzir na Bélgica. Pior, o mês passado fui em trabalho à Alemanha e, pasmem-se, também os eficientes alemães abrandam para ver o acidente no sentido contrário. Torna-se óbvio o perigo inerente a ceder a um instinto tão primitivo: a completa distração, o abrandamento quase-súbito e por vezes o choque do que se vê são fatores conhecidos por causar mais acidentes que, sendo simpático, seriam perfeitamente evitáveis.
Se no ambiente rodoviário a situação é óbvia e um pouco absurda, na vida política tudo se torna mais súbtil. Há muitos acidentes violentos, graves, trágicos na política: o despejar sem fim de milhares de milhões de euros numa companhia aérea falida, uma corrupção sistémica que faz aflorar um novo caso todas as semanas, o estado lastimável do SNS, as condições dos professores ou a crise da habitação.
É importante tomar alguma atenção a estes acidentes políticos (no caso rodoviário a lei exige que realmente se preste auxílio caso ainda não tenha acontecido). E atenção é prestada: compõem na totalidade o discurso político em Portugal. Os comentadores comentam acidentes, os deputados discutem acidentes, os jornais colocam os acidentes nas suas capas e os telejornais abrem sempre com os acidentes. A vida política portuguesa gira à volta dos acidentes mas de vez em quando alguma coisa chata (lá para fora, normalmente), interrompe este ciclo: a Ucrânia que precisa de mais material e lá temos de amanhar uns tanques à pressa, eleições no maior país lusófono, grandes decisões sobre qual será e por onde (geograficamente) passa o futuro energético da Europa, entre outras chatices.
Depois de uma ou outra intervenção vazia, vaga e normalmente inconsequente, rapidamente as “elites” voltam aos acidentes. É fácil de entender este foco: ser bom gestor de acidentes significa ser bom político em Portugal. Costa é quase unanimamente reconhecido como um “animal político” que muito habilmente navega os mares agitados da política interna Portuguesa e do seu partido (que tantas vezes se confundem) - elimina adversários, esgota aliados e estrategicamente muda as peças do seu arsenal político.
O facto desta habilidade e “manha” ser equivalente no nosso país a ser bom político explica em parte a desconfiança com que a população olha para a política lusa mas também revela a inexistência de um horizonte para além do acidente aparatoso. Não se sabe onde a estrada onde Portugal conduz vai dar, não se sabe porque se está nesta estrada e não noutra, não se sabe em que saída da autoestrada é suposto sair - os quatro piscas que se usaram para confortavelmente analisar o acidente nunca são desligados porque a navegação é feita em constante marcha de emergência. Não há GPS nem mapa no tablier, andamos para a frente (achamos) e depois logo se vê.
Não temos dos nosso principais actores políticos uma visão ou plano nacional que passe dos 2 anos. Se pensarmos sobre geopolítica e o nosso papel no mundo, dificil é encontrar qualquer pensamento que seja. Não sabemos bem como prentendemos ser parte relevante do projecto europeu - se pela via energética, militar, política ou económica e como o vamos atingir. Por enquanto o “plano” é ir a reboque do que quer que se decida em Bruxelas, contribuindo para a União com uma involuntária “fuga de cérebros” diligentemente formados nas nossas Universidades e nunca aproveitando totalmente a miríade de benefícios que esta integração económica e os seus fundos nos poderiam trazer.
Das nossas características atlânticas e únicas nada se ouve para além do convite-acidente a Lula da Silva para discursar (mas depois já não), da corrupção-acidente luso-angolana, das visitas-dançantes-acidente de Marcelo Rebelo de Sousa ou de outras futilidades-acidente de curto prazo que vão aparecendo na lusofonia. Se os líderes destes países estiverem, com cada vez menos razões para tal, aleatoriamente interessados em Portugal - melhor, se não estiverem (como Bolsonaro) também ninguém se chateia.
Pensar (e estruturar) Portugal a longo prazo é algo para sonhadores, especialistas enfiados em think tanks, colóquios, palestras e outros eventos da intelectualidade. Esse trabalho fica contido numa ou outra coluna ou podcast e é aí que deve estar - alguém tem tempo para essas utopias quando aparecem as sirenes do INEM no retrovisor e uma confusão instalada na berma?