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Bem criança ia para as vindimas na Régua com o meu pai que era o rogador das pessoas que iam trabalhar na apanha das uvas numa quinta na Régua e noutra em Vila Real.
Rogador quer dizer que era ele o responsável por juntar um grupo de 10 mulheres ou mais para as levar para as vindimas.
Tempos duros em que durante todo o dia, vários homens com o rosto marcado pelo tempo e outros ainda muito jovens levavam os cestos às costas carregados com uvas com destino aos lagares.
Para depois à noite as irem pisar com os pés até serem totalmente esmagadas e de lá sair o vinho. Ainda hoje me pergunto como é que aqueles homens de barba rija e outros apenas rapazes muito novos podiam trabalhar tantas horas seguidas sem vergar. De sol a sol nas vindimas e à noite a pisar as uvas, enquanto cantarolavam para ajudar a passar o tempo.
Ainda arranjavam fôlego para depois de saírem dos lagares fazerem um baile com as moças da terra. O seu maior prazer era o momento de as chamar para dançar. Nunca se deitavam antes da meia-noite.
Claro que eu era apenas uma criança e nunca ninguém me iria chamar para ir dançar. Também não poderia, pois, mesmo que fosse maior, o meu pai não o ia permitir.
Alguns rapazes arranjavam namoradas com aquelas jovens que andavam na vindima.
Durante duas semanas ou mais não íamos a casa. Os dias para mim pareciam nunca mais terminar, eu era uma criança que cortava cachos de uvas como as adultas, pois tinha que fazer o meu trabalho.
Debaixo de sol ou chuva não tinha nada para me proteger e como eu, havia muitas raparigas naquela condição. O meu irmão que é mais velho que eu um ano, andava a carregar os cestos das uvas. Quando chegava à vinha e via que eu ficava para trás, enquanto os cestos das uvas não estavam cheios, ele aproveitava aquele intervalo para arrancar as folhas das videiras para eu poder cortar os cachos das uvas com maior facilidade. À medida que os dias iam passando, eu comecei a acompanhar as vindimas ao ritmo dos mais crescidos.
Para o meu pai eu devia andar sempre no grupo da frente e nunca devia ficar para trás, pois ele queria manter-me debaixo de olho. Muitas vezes as lágrimas caiam-me pela cara, pois enquanto as outras crianças estavam na escola, eu andava nas vindimas.
Sempre que chegava à escola, eu sabia que estaria atrasada em relação aos outros alunos, mas não era só isso. A professora ainda me castigava por eu ter faltado alguns dias à escola. Por vezes a minha mãe acompanhava-me para dizer à professora se eu não tinha ido à escola é porque tinha andado na vindima.
Quando terminava a vindima na Régua, vínhamos um dia a casa. Lembro-me da minha mãe ir lavar as roupas no tanque da Aldeia, para depois acender a lareira para deixar as roupas a secar durante toda a noite.
Lembro-me também de uma vez perguntar à minha mãe porque me morde tanto a cabeça? Será que apanhei piolhos?
Eu tinha razão, dizia para a minha mãe, nem acredito que apanhei piolhos na vindima. Mas naquele tempo em algumas quintas, as camas eram feitas no chão, com colchões de palha que deviam ser muito velhos. As roupas das camas eram uns cobertores castanhos que até picavam na pele, ficando vermelha de irritada. Lembro-me como se fosse hoje.
Quando vi a minha mãe a colocar aquele pó na minha cabeça e nos meus longos cabelos, queixei-me: que cheiro horrível. Ela pediu-me para ter paciência. Depois colocou-me um lenço grande na cabeça, para não sentir
o cheiro. Amanhã os piolhos estarão todos mortos, dizia-me.
Actualmente, a vindima tem melhores condições de trabalho e de alojamento para os trabalhadores.
Assim se passaram alguns anos da minha vida, que mesmo assim, nova vim para a Suíça. No último ano que andei na vindima eu já me estava a transformar numa jovem mulher e reparava no olhar curioso dos rapazes quando eu passava.
Diante dos meus pais ninguém tinha coragem de me dirigir o olhar, mesmo na vindima. Ninguém arriscava a chegar perto de mim para me dizer uma palavra. Quem me comprava o pão para comer durante a vindima era o meu irmão, pois eu estava proibida de sair da quinta.
Nos últimos dias da vindima, iam todos a pé para a Cidade da Régua, para se divertirem, e eu era a única a ficar na quinta.
Não tinha o direito de ir com os outros trabalhadores, pois o meu pai não deixava. Via o ar triste do meu irmão. Eu respondia, vai, pois, eu vou ler. Compra-me uma revista, algo para mim. Claro que ele comprava até chocolates e outras coisas que me dava. No meu último ano de vindima, um amigo do meu irmão gostava de mim. Claro que eu também me sentia atraída por ele.
O meu irmão teve uma ideia. Pediu ao meu pai para eu ir fazer a vindima para outra quinta. Você não é o rogador daquela quinta, mas eu cuido da minha irmã. O meu pai perguntou como tínhamos tempo de fazer as duas vindimas com ele, como habitualmente e ainda passar para a terceira quinta.
O meu irmão respondeu: vamos um dia mais tarde, vamos de comboio. Porque o rapaz também ia, mas o meu pai não sabia.
Lembro-me que ele passou em casa do meu pai para receber o dinheiro das duas vindimas.
Olhou-me com um olhar feliz como se me dissesse, vamos poder falar, o teu pai nesta vindima não vai estar.
Como fiquei feliz pela primeira vez ao ir para uma vindima.
Chegou ao fundo do portão da minha casa e com o capacete da moto na mão, voltou a olhar para trás e despediu-se com um doce sorriso.
Poucas horas depois dele ter partido o meu irmão chegou a casa em lágrimas. Vi que algo grave se tinha passado, pois ele mal podia falar. No meu quarto ele lamentou que o Quim tinha acabado de morrer num acidente de mota, perto da casa dele.
Eu mal queria acreditar que aquele olhar dele para mim tinha sido o último e nunca iríamos poder falar do que sentíamos um pelo outro.
Como chorei naquele dia. Quando o meu irmão chegou do funeral disse-me: agora temos que ir para a vindima. Eu respondi, mas se íamos para aquela vindima era para podermos estar juntos os três e eu poder namorar com ele.
Quando eu fosse para a Suíça, ele prometeu escrever-me, como te tinha dito.
Vi tanta tristeza no meu irmão, pois fomos para aquela vindima para onde devíamos ir os três. Nem eu nem o meu irmão ao ir para aquela vindima tínhamos palavras. Nós fomos e ele ficou debaixo da terra sem eu nunca mais o poder ver.
Assim fiz aquela malfadada vindima sempre a pensar porque no destino, porque ele morreu poucos metros antes de chegar a casa naquela maldita curva. Em que estaria ele a pensar quando se deu o acidente. Todos os dias passava pelo local trágico e me lembrava dele. Tantas vezes ele por lá passou, conhecia o caminho tão bem e foi morrer perto de casa.
Em Novembro do mesmo ano parti para a Suíça.
Ainda hoje quando visito a Aldeia e passo naquela estrada, lembro-me da sua queda de mota e pergunto-me porque terminou ali o destino dele.
Vejo a casa dos pais dele caída no chão, porque também já partiram para o mesmo reino.
25-03-2022