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No decurso da Segunda Guerra Mundial, os bombardeios destruíram grande parte do centro de Liepāja, cidade na costa da Letónia. Mesmo assim, sobrou obra digna de referência: as casas de madeira, algumas muito valorizadas pela pátina, os frontispícios que denotam Arte Nova, os imóveis com firma de Paul Max Bertschy, arquiteto oficial do burgo por vários decénios, a catedral da Santíssima Trindade, em cujo interior avultam as curvas do Rococó e o dourado que, sobre o branco, realça ornatos e relevos. No trabalho de Bertschy predomina o tijolo e bom exemplo disso é a igreja de Santa Ana, de risco neogótico (o retábulo barroco que lá se encontra também justifica a visita).
No que toca ao moderno, gostei do edifício monolítico envidraçado onde se situa a principal sala de concertos de Liepāja, os seus tons ambarinos ganham particular fotogenia quando contrapostos à luz crepuscular ou ao negrume.
Ainda no centro, o Promenade Hotel funciona num antigo armazém de depósito de mercadorias e almeja atrair pessoas que se interessam por cultura — tem mostra permanente de obras de arte —, mas o certo é que no nosso quarto a luz não era própria para ler à noite.
Além do giro pelo núcleo urbano e pela praia de areia fina, outrora pouso da aristocracia russa, fomos a Karosta, a única zona de Liepāja que buliu comigo.
Karosta guarda longa história de prestança militar. Entre o fim do século xɪx e o término da URSS, ali existiu uma base naval. Durante a era soviética, o acesso à área esteve mesmo interdito à população civil.
Os testemunhos do passado que conformam o caráter de Karosta datam de dois períodos diversos, o imperial e o soviético. Deste, vale a pena referir os blocos habitacionais de baixo custo e edificação rápida (khrushchyovkas), marcas do nivelamento e da uniformização caraterísticos da época. A sua aparência atual deixa a desejar, não falta a cor esmaecida, a fenda na parede, o caixilho que se degradou. Os moradores, sóbrios e tristonhos, lançaram‑nos olhares circunspetos, como se de nós esperassem algum género de intrusão ou de censura.
Do czarismo, merecem nota a catedral ortodoxa, os restos de uma fortificação na orla costeira e várias construções com paredes de tijolo vermelho‑acastanhado: a torre de depósito de água; o edifício do antigo presídio, que acolheu sobretudo o recluso militar; o albergue dos pombos‑correios (úteis para levar mensagens a quem estava a bordo de um navio), hoje um prédio decadente; o picadeiro — também serviu de ginásio e de local de festas e banquetes —, agora um hipetro cujas paredes soam charmes e elegâncias de antanho. Devotada a São Nicolau, protetor dos marinheiros, a catedral exibe a graça que advém das luzidias cúpulas bulbiformes e do revestimento com tijolo amarelo. Proibido o culto durante o ciclo soviético, nela funcionou então um ginásio, um cinema e um clube de marujos. No interior, outrora rico, hoje falho de atributo a destacar, popes simpáticos e beatas insuportáveis, implicativas.
A res militaris e o exercício da autoridade fascinam os russos e os que se identificam com o imaginário russo. São almas que gostam da dicção impositiva, da ordem, da arma, do látego. Para elas, a tarimba extrapassa o orbe das forças armadas: nas minhas viagens, sobretudo pela Europa de Leste, amiúde encontro turistas russos que envergam uniforme militar; no albergue onde pernoitei, em Taline, havia uma brochura que em inglês propunha visita à parte velha dessa capital e em russo sugeria a condução de um tanque.
Na antiga penitenciária de Karosta, senti o travo do militarismo e da submissão, de um militarismo e de uma submissão elementares, primários. Eu e a Jūratė integrámo‑nos no grupo que fez a visita em inglês. Esta seguiu um modelo usual, sem episódio digno de realce. Cruzámo‑nos várias vezes com os que, para o efeito, tinham escolhido a língua russa. Munido de apito e cassetete, vestido como se fosse um tropa, o respetivo cicerone simulava ser carcereiro e, evidenciando regalo patético, fingia voz de comando, batia com o salto da bota no chão, ameaçava punir os presos, dispunha‑os em fila, ordenava‑lhes que se voltassem para a parede, à qual deviam levar as mãos. E eles, adultos, obedeciam‑lhe empenhadamente. Achei o espetáculo pueril, ridículo, próprio de cabeças inanes. Não por evocar modos e cenografias castrenses, mas pelo descaminho da dignidade. Percebi uma menorização que me trouxe à memória as abjetas praxes académicas de Coimbra (em Karosta, bem entendido, faltava a sevícia).
Dito isto, indico ao leitor, potencial visitante, outros credores de atenção que, contudo, não afeiçoam a índole de Karosta: a ponte Oskars Kalpaks — capaz, graças ao seu desenho, de resistir à usura que o tempo produz no gosto — e o monumento, em forma de menorá, que homenageia as vítimas do Holocausto.