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Vílnius, outrora a «Jerusalém do Norte», foi um centro de difusão do judaísmo. A barbárie nazi e o invasor soviético expulsaram dali grande parte da população judaica e deram cabo do seu património mais significativo.
Neste texto, deixarei recordações da minha visita à capital da Lituânia, designadamente notas a respeito de três igrejas que mostram estilemas do Barroco (os jesuítas importaram‑no durante a Contrarreforma). Em casa e no escritório cultivo o minimalismo. Quando viajo, a girata pelos excessos do Barroco ajuda‑me a reunir evasão geográfica e despaísamento intelectual.
De confissão católica romana, com planta de cruz latina e três naves, a igreja dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo começou a ser edificada em 1668 por mando de Michał Kazimierz Pac, hétman do Grão‑Ducado da Lituânia e depois também voivoda de Vílnius, para assinalar os êxitos militares que, alguns anos antes, haviam permitido libertar a urbe do jugo russo. As fontes que consultei divergem a propósito do ano em que terminaram as obras de construção, certo é que o grosso dos trabalhos decorreu na segunda metade do século xvɪɪ.
A frontaria é bonita, mas não causa arroubo. Aquilo que distingue a igreja e a eleva aos píncaros é o interior de estalo, sobretudo os ornatos de estuque — no total, mais de duas mil esculturas e moldagens — que se congraçam numa magnífica cenografia barroca e formam decoração farta e singular. Entre esses arreios, incluem‑se flores, animais, armas, utensílios domésticos, objetos litúrgicos, putti, anjos, demónios, uma mulher com dois bebés, um homem que exibe a cabeça do inimigo degolado; como noutras empreitas de cânone barroco, há composições de que ressumbra movimento e não falta a figuração do memento mori, feita através de um esqueleto armado de gadanha. Graças ao apuro da sua arte, os italianos Pietro Perti e Giovanni Maria Galli levaram à cena uma notável peça de theatrum mundi, seguida pelo olhar divino representado na cúpula.
Afora tais atavios, merecem alusão as imagens dos retábulos que se encontram nos braços do transepto, o candelabro em forma de barco que no cruzeiro pende da cúpula e A despedida de São Pedro e de São Paulo, quadro de Franciszek Smuglewicz que avulta na capela‑mor. Sobre o órgão, no intradorso de um arco, os frescos com cenas da vida de São Pedro não valem muito enquanto obra artística, cativaram‑me por causa da inocência de tempos prístinos que desvelam.
A dois passos da igreja dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, o restaurante Sakwa oferece mesa farta e um cenário (do qual ressaltam notas de banco que estão fora de circulação) cujo caráter prosaico se acentua depois da visita ao templo vizinho.
Erguida segundo a norma gótica entre 1387 e 1426 e entregue à Ordem dos Jesuítas em 1571, a igreja de São João Baptista e de São João Apóstolo e Evangelista foi objeto de reforma, no século xvɪɪɪ, em molde barroco. Com o neoclassicismo chegaram os interiores austeros e não espanta que, no decurso da reconstrução oitocentista, parte do caprichoso adorno tenha sido desmantelada.
A frontaria da igreja evoca um órgão. Estátuas, volutas, cartelas, cruzes de ferro forjado e vasos sinalizam o apego ao efeito decorativo. A disposição das colunas e das pilastras ajuda a produzir um efeito que sugere ondulação.
Demorei‑me a observar o portal rococó da capela de Santa Ana, os confessionários de madeira com cobertura conquiforme e, principalmente, os retábulos que escaparam à varredura neoclássica e se encontram no presbitério e na área que lhe adjaz. A arrumação desses retábulos e a abastança decorativa que exibem — pinturas, esculturas, colunas coríntias, cartuchos — denotam gosto pela cenografia.
Na era soviética, a igreja serviu de museu universitário e isso explica a presença de retratos de divulgadores das teses fisiocráticas. Acabei por fazer um giro através do tempo em que ensinei a fisiocracia aos meus alunos de Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Reconstituí o Quadro Económico, de François Quesnay, e lembrei‑me da lata de um estudante que, num exame oral, justificou o desconhecimento da matéria com a falta de domínio da língua francesa (depois interroguei‑o acerca das ideias de Adam Smith e ele falhou de novo, mas sem invocar a ignorância do idioma inglês).
Já na igreja do Espírito Santo, de culto ortodoxo, marcou‑me o fervor dos crentes, o empenho que punham numa cerimónia religiosa. Quanto à decoração, os seus elementos mais relevantes datam do século xvɪɪɪ. São dignos de nota os trabalhos de estuque, os frescos, a iconóstase tardobarroca de madeira e o baldaquino, no qual se encontra um relicário com os restos mortais de três santos, a saber, António, João e Eustáquio. O modo de emprego da cor no espaço interno do templo rasa o kitsch, mas atrai.
Para além das exuberâncias do Barroco e da entrega ao rito ortodoxo, recordo, em especial, o museu aberto no antigo edifício‑sede do KGB[1], a pitança do restaurante Lokys e também Gedimino prospektas, extensa avenida arborizada que teve topónimos diversos, conforme as voltas do passado (entre os que lhe deram nome, contam‑se Estaline e Lenine).
No Lokys, a ementa inclui informações relativas à história de algumas iguarias lá postas na mesa. Eu devorei um naco de castor estufado com puré de batata e de espinafre, a Jūratė deliciou‑se com um prato de veado e batatas assadas, boletos e um chimichurri em que sobressaía o sabor a hortelã. Um italiano, velho e patacudo, dispensava trato de mulher‑objeto à sua sugar baby com corpo de sonho. Causou‑me repulsa. Entendo a fome de carne tenra, mas a coisificação dá cabo das minhas balanças, nas quais a necessidade de comunicação pesa muito.
Na Gedimino prospektas, apreciei o charme do Norte da Europa, os modos sóbrios, os cafés, as lojas onde se pode escolher com calma e critério. Embora tivesse a vista disciplinada pela presença da Jūratė, pude atentar nas beldades de cortar a respiração. Os habitantes de Vílnius ufanam‑se da Gedimino prospektas, consideram‑na a sua avenida dos Campos Elíseos. Assevero que não trocaria as amenidades dessa artéria pelo bulevar parisiense, que perdeu lustre e no qual sempre recebo um ramalhete de desprazeres: magotes de gente sem ponta de donaire, ranchos de asiáticos sequiosos de um consumo irrazoável, basbaques nas bichas da Louis Vuitton e empregados de mesa grosseiros.
Alimentava entusiasmo acerca de Užupis, domínio de bobos e artistas. Vim de lá desiludido. Descobri barbearias trendy e senti o hygge de uma pastelaria, mas acho que o bairro não tem traços distintivos que façam dele um must. Ouso mesmo dizer que a sem‑gracice da maior parte das pessoas que vi equivale à observável em arrabaldes tristes e cinzentos. Enfim, coisa de somenos importância numa cidade deveras interessante.
[1] Escrevi um pouco sobre ele no texto Em Vílnius, a recordação dos coscuvilheiros.