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José Régio viveu em Portalegre durante mais de trinta anos, nela foi professor e expandiu o estro. Dedicou‑se à escrita, foi «desenhista de domingo» e, por ditames de ordem moral, mostrou oposição ao Estado Novo. Explorou os arredores da cidade e visitou o Alto Alentejo, aí comprou muitos trabalhos de arte popular, religiosa ou profana. No edifício onde Régio residiu, instalou o município uma casa‑museu na qual está exposta parte dessas obras, algumas de traço ingénuo, outras com laivos de erudição.
Em matéria de escultura, avulta uma importante congérie de crucifixos, da qual a minha memória de leigo destaca dois. Num deles, calicromo e feito de madeira e cortiça, anjos e santas mulheres ladeiam a figura de Cristo. No outro, do século xv e de madeira, Cristo está com os pés cruzados, o rosto e a inclinação da cabeça são expressivos; esta imagem inspirou Régio a escrever o poema Fraternidade. Menciono ainda as estatuetas representativas de Santo António, padroeiro da cidade e da diocese de Portalegre, e as imagens de Nossa Senhora, mormente uma Virgem da Piedade, do século xvɪɪɪ, de pedra de Ançã, e um «barro de Portalegre», da mesma centúria, que também evoca a Virgem da Piedade. Last but not least, assinalo a empresa que, durante a visita, mais me tocou: um «barro de Portalegre», do século xvɪɪɪ, que representa o Senhor da Paciência.
Quanto ao mobiliário de caráter e à pintura, detive‑me, respetivamente, diante de um oratório do século xvɪɪɪ, composição de madeira que forma conjunto eucromo, e de Poeta de Deus e do Diabo, óleo sobre tela de Ventura Porfírio, de 1958, que retrata José Régio.
O acervo integra tarros, almofarizes, colheres, marcadores de pão e bolos, cornas, polvorinhos, dedeiras e outras peças manufaturadas por pastores, que se serviam do que tinham à mão (madeira, cortiça, canas, chifres) para produzir os apetrechos de que necessitavam, eles ou as suas famílias. Os ditos marcadores, por exemplo, prestavam para distinguir pães e bolos cozidos em forno comunitário.
A cerâmica não escapou ao colecionismo regiano. Vi espécimes de faiança ratinha, pratos com motivos coloridos, feitos em Coimbra, que os trabalhadores beirões levavam consigo quando iam para o Alentejo, nomeadamente em época de colheitas. O «ratinho» era igualmente conhecido por «troca‑trapos», já que, terminada a safra, amiúde deixava a pratalhada, recebendo em troca roupas e tecidos.
Dos artefactos de metal, surpreendeu‑me o que não conhecia: os cães, gatos e cavalos de lareira, que são suportes de espeto, de ferro forjado, com formas animais. Eis um modo interessante de o homem do povo afeiçoar o utensílio caseiro segundo o seu juízo estético.
Saí feliz da casa‑museu. Além da lição de etnografia e de arte popular, havia entrado na intimidade de autor que valorizo e revira‑me no homem atento ao mundo que, entregue às coisas do espírito, se sentia feliz dentro daquele envoltório.
O museu da tapeçaria de Portalegre dá a conhecer a história e modos de execução do estrágulo portalegrense e exibe rica coleção representativa da arte. Diana, a primeira obra do género, data de 1947 e baseou‑se num guache de João Tavares. A tecedura é inspirada numa obra de um pintor, transpõe‑na para outro suporte e apresenta‑a noutro tamanho. Graças ao ponto de Portalegre, criado por Manuel do Carmo Peixeiro, as tapeçarias respeitam a minúcia e geram belo efeito, além de acarretarem benefícios térmicos e acústicos para o local onde se encontram. Feitas de lã, eliminam brilhos e efeitos de luz indesejáveis, e, no aviso de alguns, são mais bonitas do que o original de que se havia partido; fiz meu esse parecer ao observar Ave do Paraíso, de Joana Vasconcelos, Hungarian Folklore, de Suzanne Dolesch, e Ponta da Culatra, de Henriette Arcelin.
São muitos os artistas célebres cujo trabalho se acha declinado em tapeçaria de Portalegre. Cito, nomeadamente, Almada Negreiros, Cruzeiro Seixas, Júlio Pomar, Maria Helena Vieira da Silva, Carlos Botelho, Manuel Cargaleiro e Júlio Resende. Destaco Arrufo, de Júlio Pomar, Vista de Lisboa, de Carlos Botelho, e Portugal, grande colgadura de Almada Negreiros.
No país que o salazarismo fechou, a tapeçaria portalegrense deve grossa parcela da sua notoriedade internacional a Jean Lurçat, nome sonante da tapeçaria francesa. Dele, gostei de Leão.
Durante o giro pelo museu, pude alargar horizontes. Estava patente ao público uma exposição de trabalhos de arte têxtil, executados por mulheres, nos quais não foi usado o ponto de Portalegre. Topei peças singulares e muito diferentes entre si, saliento Incorpo, de Susana Pires, costura de veludo e cetim, e, sobretudo, a Caravela quinhentista de Inês Carrelhas, feita de algodão, juta, linho, casca de coqueiro, pano‑cru, lã e folha de palmeira.
A visita ao museu da tapeçaria de Portalegre aproposita homenagem ao pano do Alentejo e a um poeta que cantou Portalegre, Carlos Garcia de Castro. Fui a livrarias e alfarrabistas no torrão luso, não consegui encontrar uma só obra do autor. Em contrapartida, enxerguei bastante imundície literária. Aqui deixo o seu poema Para os têxteis, que copiei da internet: «São trapos e são ourelas,/tiras, farrapos, fazenda/— entremeados de cor.//Do que não presta a ilusão se faz.//São as norças, distensões/em sulcos de pano, veias,/como na terra se traçam/com charruas, são aivecas/na humildade das mantas.//Por discrição as fibras se distinguem.//Modelo de paz aos pés,/conforto da lã aos ombros,/segredos são poupança nos alforges./Lençol de cama à sesta, alentejana,/também é tenda a encobrir geadas,/dorso de besta, a capa dos ciganos.//Mantas de lã e trapos, em família,/a urdidura é espessa, utilitária,/silenciosa, é feita para os tapetes,/ardente e despojada nas paredes.//Estes os panos de entrançadas cores/do Alentejo — uma ironia à solta.»