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« -- […] É a mulher de um dos meus melhores amigos. Eu já sabia que ella fugira de Bruxellas com um portuguez; mas não esperava encontral-a. Onde vive ella?
-- Na Cruz da Regateira, a meia légua do Porto, com um fidalgo transmontano, chamado Nicoláo de Mesquita.»
[…]
«Nicoláo de Mesquita amára a mulher do amigo que lhe aligeirára os anos do exílio. Infamia irritante em animo até d’aquelles que propriamente se sentem mordidos do remorso de um delícto similhante! Amára até ao absoluto despreso de si mesmo. Seguira-a de Lyão á Bélgica. E d’aqui se fugira com ella para Portugal, em quanto o marido fôra a Paris pressurosamente a cuidar em negócios urgentes da sua industria.»
São duas passagens das primeiras páginas da novela O Esqueleto, de Camilo Castelo Branco. Antes, a justificar a escolha de um tema não edificante, apresenta um prefácio com uma reflexão em forma de diálogo com o seu editor, que define como «homem de bem», mas a quem aponta como responsável por não publicar os seus romances sem «a prévia clausula de não serem historias de crimes, que toquem directa ou indirectamente com a probidade da vida conjugal, ou relevem desdouros da honra domestica». Não há preocupação com a honra de Deus, nem da Pátria, ao contrário de outros que viriam, mas ai daquele que se metesse com a família! A este propósito, coloca Camilo a questão nos dois seguintes termos:
« Convém mostrar as repulsões do crime lá em baixo, onde a providencia social lhes cavou a paragem; ou é melhor conduzir, por entre hortos ameníssimos, os nossos personagens engrinaldados, e mettel-os no ceu finalmente?»
Respondia-lhe o proprietário do prestigioso jornal que lhe costumava editar os romances, que os pais de família não querem que suas filhas conheçam «a corrupção, que lavra nos pântanos da sociedade» ou leiam «novellas de adulterios», que é o tema desta história que leio numa edição de 1910, como já se percebeu pela ortografia, passada entre Lyon, Bruxelas, Porto e Chaves. A união europeia avant-la-lettre em todo o seu esplendor.
Esta «contenda amigável», como lhe chama Camilo, não vai muito mais longe, pois consegue este apresentar um argumento que convence o amigo, argumento de teor pedagógico, o de este tipo de romance levar «ao conhecimento das donzelas, até certo ponto innocentes, que o desdouro, cujo horror não as apavorou nos salões, tem angustias secretas, e infâmias estrondosas.»
Vê ele assim estes romances como uma forma de desmascarar esta chaga social, prometendo, no que toca o presente livro, «extrahil-o da circulação» caso chegue à conclusão de que «esta coisa de romances, escriptos assim, peoram a humanidade, e alvorotam a quietação dos pais de família».
Não o faz. Ainda bem. Perderíamos mais uma pérola narrativa deste mestre.
Ao contrário, hoje escondem-se livros, reescrevem-se livros. E ficamos tranquilos imaginando que este mundo é perfeito e sempre o foi. Uma loucura!
Que pena teria sido se o bibliotecário da carrinha da Gulbenkian que me deixava encher um saco de livros que ele sabia que eu ia devorar, fechando os olhos ao número estupidamente superior aos três que o regulamento permitia e à cor da tarjeta que nem sempre era o verde adequado à minha idade, que pena teria sido, repito, se eu não pudesse ter lido todos esses livros desaconselháveis para uma menina da minha idade. É que eu já tinha devorado “Os Cinco” todos. Precisava mesmo de ler outros para poder comparar, tal como tinha precisado de ler “Os Cinco”… pela mesma razão. É assim que se forma o gosto e o sentido crítico. O que só pode melhorar a humanidade. Em Bruxelas, no Porto ou em Chaves.